sábado, 29 de dezembro de 2007

A utopia de Carl Rogers


O grande psicólogo norte-americano Carl Rogers fez em 1979 um relato pessoal sobre a perda da sua querida esposa Helen, uma antiga amiga de infância. Ele tinha consciência de que as suas palavras teriam grave repercussão no mundo acadêmico e materialista reinantes nos EUA e no mundo ocidental. Mas Rogers não estava muito preocupado com as aparências. Já em idade avançada, estava filosófico e cada vez mais convicto de que a verdade estava acima dos interesses humanos e corporativos.

Rogers conta que, a convite de amigos, havia participado de uma reunião mediúnica, constatou a autenticidade da mensagem da falecida irmã de Helen e tirou conclusões muito positivas desse contato, sobretudo a quebra de antigos preconceitos. Confessou seu longo desinteresse e cetismo em relação a continuidade da vida e a sua mudança radical após esse evento. Dessa experiência espiritual surge um outro Rogers, talvez o verdadeiro, que permaneceu oculto durante a longa trajetória profissional. É um Rogers de profundidade assustadora, leitor dos novos fatos científicos, do futuro do planeta e da Humanidade, e ao mesmo tempo um ser humano simples, preocupado com o aproveitamento e a evolução pessoal na sua existência. Nesse tempo de 90 anos ele se preparou para ser sacerdote e professor, mas acabou descobrindo que a sua missão era a defesa da psicologia e travar uma difícil batalha contra o poder da psiquiatria. Foi tudo isso, mas foi um revolucionário tranquilo.

Psiquiatras e psicólogos hoje vivem relativamente em paz. Cientistas e céticos influentes atualmente acenam, embora cautelosos, sem preconceitos para as questões da espiritualidade. Muitos deles fazem do assunto uma bandeira para lotar congressos, realizar workshops e vender milhares de livros. Antes as coisas não eram assim e muitas mudanças aconteceram por causa de Carl Rogers e outros “conspiradores” da Era de Aquário. Essa tendência havia sido descrita na famosa obra da jornalista Marilyn Ferguson e apontava os novos rumos das ciência e das artes através da quebra de paradigmas seculares.


Um novo mundo , uma nova pessoa - por Car Rogers


Nosso mundo está em uma tumultuada agonia, agonia sem parto. Isto bem pode ser a desintegração precedente à destruição de nossa cultura pelo suicídio de um holocausto nuclear. Por outro lado, o terrorismo, a confusão, o desmoronamento de governos e de instituições podem ser as dores de um mundo em trabalhos de parto (...) nas aflições do nascimento de uma nova era (...) do nascimento de um novo ser humano, capaz de viver nessa nova era, nesse mundo transformado. Estamos diante não de uma, mas de várias mudanças inevitáveis de paradigmas. Os velhos padrões se desvaneceram. Isto nos inquieta e nos deixa incertos.

A busca por uma unidade material (moléculas, átomos, núcleos do átomo, inúmeras micro-partículas) do universo foi infrutífera. Ela não existia. As partículas eram padrões de energia oscilante. Toda nossa percepção da realidade se desvaneceu em irrealidade. Nosso mundo era diferente de qualquer coisa que tivéssemos imaginado. Não existe solidez nele.

As pesquisas de J.S. Bell –1964 a 1972 - sugeriram um universo interconectado em cada evento está em conexão com todos os outros.

Partículas gêmeas, com o mesmo spin, poderiam ser separadas. Se o spin de uma dessas partículas é alterado,o spin da outra muda instantaneamente. Como essa partícula “sabe” o que está acontecendo à sua partícula gêmea?

Existe no universo um misterioso e desconcertante vínculo de comunicação.
Nesse novo paradigma, matéria, tempo e espaço desaparecem como conceitos absolutos ou como conceitos significantes. Existem apenas oscilações. A solidez de nosso mundo desapareceu. O velho paradigma não serve mais.

A ciência – pedra angular da nossa era tecnológica- não é mais simplesmente um sistema linear de causa e efeito, mas é uma descrição maravilhosamente complexa do processo recíproco de causa e efeito através do qual o universo está criando a si próprio!

Fritzjof Capra e Gary Zucav demonstram a convergência entre a física racional e teórica do ocidente e o esoterismo pragmático oriental.

A epistemologia de Murayama demonstrou eu os sistemas vivos só podem ser entendidos através do reconhecimento do fato de que existem interações recíprocas de causa e efeito. Estas ampliam os desvios e permitem o desenvolvimento de informação nova e de novas formas.
O prêmio Nobel em química Prigogine provou que quanto mais complexa a estrutura –química ou humana – mais energia ela despende para manter a complexidade. O cérebro humano, com apenas 2% do corpo, utiliza 20% do oxigênio disponível.

Um sistema complexo é instável e nele ocorrem flutuações ou “perturbações”. Se elas são pequenas ele as dissipa. Se elas são grandes, elas são aumentadas e ampliadas pelas conexões do sistema. As perturbações atingem um ponto tal que o sistema –químico ou humano – é conduzido a um estado alterado, novo, mais coerente, mais ordenado e complexo. É uma nova forma de ser. Esta mudança não é uma mudança gradual, é súbita, com vários fatores operando ao mesmo tempo para forçar a alteração. Segundo Ferguson, “Quanto mais complexo um sistema, maior o seu potencial para a auto-transcendência: sus partes cooperam para reorganizá-lo.

A teoria holográfica de Karl Pribam etá alterando não apenas a nossa compreensão do como percebemos – e talvez mesmo criemos – a realidade.

Barbara Brown demonstra em seu trabalho sobre biofeedback que a mente é uma entidade maior do que o cérebro, e que o nosso intelecto não consciente é capaz de realizar proezas como controlar uma única célula selecionada entre trilhões de células do corpo.
Aspy, Roebuck e Tauch mostraram que, dado o clima psicológico adequado, a aprendizagem e a mudança e comportamento ocorrem num ritmo acelerado. Facilitar a expressão de sentimento, potencializar a pessoa, liberar o indivíduo para uma escolha mais autônoma, resulta em mais aprendizagem, mais produtividade, mais criatividade, do que a que resulta do exercício de poder sobre a pessoa.

Potencializar a pessoa é colocar em movimento um processo que pode revolucionar a família, a escola, a organização, a instituição, o Estado. Estamos diante de uma mudança paradigmática. Outras potencialidades humanas, delonga data conhecidas, mas desconsideradas, têm recebido uma nova apreciação. Fenômenos paranormais, como a telepatia, clarividência, precognição têm sido suficientemente testados e aceitos por associações científicas. Energias curadoras, que operam consciente ou inconscientemente, não são mais motivo de escárnio, mas partes de uma medicina holística. O poder da meditação, de forças transcendentais é também conhecido.

A realidade, como a temos conhecido – matéria, tempo e espaço – não existe mais de nenhuma forma fundamental. Estamos frente a uma realidade misteriosa de energias oscilantes que operam formas bizarras. É uma realidade de uma interconexão quase que mística , uma relação que participa cada entidade, tanto animada quanto inanimada.

Como indicou um grande cientista, o universo não se parece mais com uma grande máquina. Assemelha-se a uma grande “idéia”.


Um novo mundo


Este novo mundo será mais humano e humanitário. Explorará e desenvolverá as riquezas e capacidades da mente e do espírito humano. Produzirá indivíduos que serão mais integrados e plenos.

Será um mundo que valorizará a pessoa individual, o maior de nossos recursos. Será um mundo mais natural, com um renovado amor e respeito pela natureza.

Desenvolverá uma ciência mais complexa e humana, baseada em conceitos novos e menos rígidos. Sua tecnologia objetivará o engrandecimento das pessoas, ao invés da exploração delas e da natureza.

Libertará a criatividade, à medida que os indivíduos sentirem o seu poder, suas capacidades, sua liberdade.

Este é o novo mundo em direção ao qual estamos inevitavelmente nos movendo: uma nova realidade, uma nova ciência, um novo ser, em constante processo de transformação.
Quem será capaz de viver neste mundo completamente estranho e novo?

Uma nova geração de conspiradores. Os jovens na mente e no espírito. Os jovens de corpo se juntarão a pessoas mais velhas que absorveram os conceitos em transformação. Não todos, naturalmente. Eles já estão nascendo.


Um novo ser e suas qualidades

Nosso conceito de pessoa está diante de uma drástica mudança. Esta pessoa tem um potencial inimaginado, está ganhando tanto uma nova consciência de sua força e poder quanto o reconhecimento de uma única coisa constante na vida é o processo de mudança. Parece que precisamos ver o indivíduo primariamente como uma pessoa que está continuamente se transformando, uma pessoa transcendente.

Estas pessoas vivem a vida como um processo, como um fluxo de energia, uma transformação. A vida rígida, estática, não atrai mais.
Vivem numa relação confortável com a natureza, um parentesco responsável. A idéia de “conquista da natureza” é um conceito a que são avessos.

Vêem que poder sobre os outros é simplesmente uma outra forma de conquista, igualmente inaceitável e a que são igualmente avessos. O objetivo delas é potencializar a cada individuo, compartilhar o poder em empreendimentos comuns.

Experienciam sua relação com os outros como parte de sua relação com a natureza. Esta relação fundamenta a construção de comunidades em uma escala humana, o seu flexível modo de lidar com problemas comuns.

Não gostam de viver em um mundo compartimentalizado – corpo e mente, saúde e doença, intelecto e sentimento, ciência e senso comum, indivíduo e grupo, sadio e insano, trabalho e divertimento. Em lugar disso, empenham-se no sentido de uma totalidade de vida, experienciando o pensamento, o sentimento, a energia curadora, todos, de uma forma integrada.
Estes indivíduos são fundamentalmente indiferentes a posses materiais, confortos recompensas. Dinheiro e símbolos de status material não são o objetivo deles. Podem viver em abundância, mas de nenhuma forma isto lhes é necessário.

São pessoas que buscam, e seu questionamento é de uma natureza essencialmente espiritual. Estão conscientes e são influenciados pelos ritmos mais amplos do universo. Estão familiarizados com os estados alterados de consciência, com a energia psíquica, com experiências de meditação ou místicas. Querem encontrar um significado e objeto na vida que transcenda ao indivíduo.

Têm uma abertura para o mundo – tanto interior como exterior. São abertas à experiência, a novos modos de ser, a novas idéias e conceitos e a um recentemente descoberto mundo de sentimentos.

Vejo estas pessoas valorizarem a comunicação como meio de dizerem as coisas como elas são.

Rejeitam a hipocrisia, a mentira e a conversa dúbia de nossa cultura. São abertos, por exemplo, sobre suas relações sexuais, em vez de manterem uma vida reservada ou dupla.

São interessadas pelos outros, ávidas para serem úteis quando a necessidade é real. Seu interesse é um interesse, suave, não moralista, não avaliativo. Suspeitam de pessoas que “ajudam” profissionalmente.

Têm uma antipatia por qualquer instituição altamente estruturada, inflexível, burocrática. Acreditam que a instituição deve existir para as pessoas, e não o inverso.

Têm uma confiança em sua experiência e uma profunda descrença pela autoridade externa. Fazem seus próprios julgamentos morais, mesmo que desobedeçam abertamente a leis que consideram injustas.

Suas vidas são construídas sobre uma filosofia consistente – uma confiança básica na natureza construtiva do organismo humano, um respeito pela integridade de cada pessoa, uma crença na idéia de que a liberdade de escolha é essencial para uma vida plena, uma crença de que a comunicação harmoniosa entre indivíduos pode ser facilitada, um reconhecimento de que a experiência de comunidade íntima é essencial a uma boa vida.

Elas estarão à vontade em mundo que consiste somente de energia em vibração, um mundo sem uma base sólida, um mundo em processo de mudança, um mundo que a mente, no seu sentido mais amplo, tanto está consciente como cria a nova realidade. Elas serão capazes de viver as várias mudanças paradigmáticas.


Sobreviverão estas novas pessoas?

A taxa de mortalidade infantil entre aqueles que são acentuadamente diferentes de sua cultura, que carregam em si o fermento de uma revolução do estilo de vida, tem sido alta. Encontrarão, sem dúvida, muita oposição.

Terão que lutar contra a opressão, as perseguições e a marginalização. Sofrerão o desdenho, o escárnio, a raiva , por que nunca serão bons conformistas e uma constante ameaça a pessoas raivosas e amedrontadas. Serão desajustadas em muitos aspectos. Sua infância será uma um tempo de provação e de sofrimento. Mas elas dispõem de um importante elemento que nutrirá sua força, que é a sintonia com o futuro, pois podem conviver comas fantásticas mudanças quem estão em perspectiva.

Os ventos da mudança científica, social e cultural estão soprando fortemente. As enormes perturbações da sociedade moderna forçarão uma transformação para uma ordem nova e mais coerente. E nessa ordem parece crescer uma nova visão de mundo, a relação de um renovado amor pela natureza, por todas as pessoas, uma compreensão da unidade espiritual do universo.

Texto resumido e adaptado de “ Em busca da Vida”- Sumus Editorial


Carl Rogers, uma pequena biografia

Carl Ransom Rogers nasceu a 8 de Janeiro de 1902 em Oak Park nos arredores de Chicago. Tinha quatro irmãos e uma irmã, sendo o antepenúltimo. Faleceu em La Jolla, na Califórnia, a 4 de Fevereiro de 1987 na sequência de uma fractura do colo do fémur. De acordo com as instruções que deixara, as máquinas que mantinham "artificialmente" a sua vida foram desligadas após três dias de coma.

Os pais, de educação universitária, faziam parte de uma comunidade protestante de forte pendor fundamentalista. A família valorizava uma educação moral, religiosa, sendo muito conservadora, isto é, muito enraizada nos valores tradicionais e fechada sobre ela mesma; contudo, intelectualmente era muito estimulante. Desde muito novo Carl Rogers mostrou-se interessado pela leitura e pelo "saber". Foi sempre um aluno excepcionalmente brilhante, mantendo, no entanto, uma colaboração constante nos trabalhos do quotidiano familiar, reduzindo ao mínimo a sua rede relacional fora da família. A hipervalorização do trabalho físico ou intelectual, não dava azo a outras atividades de lazer, que não fosse a leitura dos clássicos, de preferência de carácter religioso. Quando Rogers tem 12 anos o pai compra uma grande propriedade nos arredores de Chicago para onde a família vai morar, com a intenção oficial de fazer uma agricultura "científica". Segundo Carl Rogers, o objectivo real era afastar os filhos dos "perigos da vida da cidade". A vida na quinta e o trabalho na agricultura levam-no naturalmente a matricular-se em 1919 em Agronomia na Universidade de Wisconsin. Envolve-se em várias actividades comunitárias desenvolvendo as suas capacidades de "facilitador" e organizador. Entra em contacto com meios evangélicos militantes e decide mudar para o curso de História com a intenção de se dedicar posteriormente à carreira eclesiástica.

No terceiro ano da faculdade faz uma viagem à China integrado numa delegação americana com o objectivo de participar no Congresso da Federação Mundial dos Estudantes Cristãos. A viagem dura seis meses e, no decorrer da mesma, abandona parte das suas convicções religiosas, abrindo-se à diversificação das ideias e opiniões. Ao chegar de novo aos Estados Unidos ganha uma nova independência e autonomia face às opiniões e posições da família, tendo começado a sofrer de uma úlcera gastroduodenal, provavelmente como resultado deste processo de afirmação.Guarda, contudo, a sua motivação para uma carreira pastoral e empenha-se social e politicamente, tentando demonstrar a incompatibilidade do cristianismo e da guerra através de escritos sobre o pacifismo do reformador Wyclif ou sobre a posição de Lutero face à autoridade.

Em 1924, Carl Rogers termina a sua licenciatura em História e casa-se com Hellen Elliot, sua amiga de infância, de quem virá a ter dois filhos: David e Natalie.Após ter obtido a sua licenciatura em História, Carl Rogers matricula-se no Seminário da União Teológica em Nova Iorque, seminário conhecido pelas suas posições "liberais" e, ao mesmo tempo, academicamente bem cotado, recusando a ajuda financeira que o pai, Walter Rogers, lhe oferecia se aceitasse matricular-se no Seminário de Princeton conhecido, então, como muito mais conservador. Durante o primeiro ano nesta instituição, Rogers tem a oportunidade de frequentar alguns cursos na faculdade de psicologia, contactando assim com os psicólogos Goodwin Watson e William Kilpatrick que muito o impressionam. Com outros colegas organiza um seminário de reflexão auto-facilitado e acaba por tomar consciência da sua "não vocação" para o ministério pastoral, apesar do estágio realizado nesse mesmo Verão, como pastor substituto na paróquia de Dorset em Vermont. Assim, no segundo ano do curso transfere-se para o Teachers’ College da Universidade de Columbia com o objectivo de frequentar o curso de psicologia clínica e psicopedagogia. Nessa instituição é marcado pela filosofia de John Dewey que terá um grande impacto na evolução das suas ideias. Entretanto, para sustentar economicamente a família continua a colaborar com instituições eclesiásticas no ensino religioso.

Em 1926, Carl Rogers postula e obtém um lugar de interno no Instituto de Aconselhamento ("guidance") Infantil recém criado pelo Fundo Comunitário de Nova Iorque. Após ter recebido um contrato de 2.500 dólares anuais, querem reduzir-lhe o salário para metade, visto não ser psiquiatra mas psicólogo. Começa a sua primeira "guerra" com a psiquiatria, mas consegue ser pago em igualdade com os psiquiatras.

Em 1928, Carl Rogers doutora-se no Teachers’ College. Na sua tese desenvolvia um teste de personalidade para crianças ainda hoje utilizado. Nessa altura trabalhava como psicólogo no Centro de Observação e Orientação Infantil da Sociedade para a Prevenção da Crueldade sobre as Crianças, em Rochester. A partir de 1929, dirige este Centro e, durante 12 anos, interessa-se pelo trabalho com crianças delinquentes e marginais. Na instituição entra em contacto com Otto Rank que o marca mais pela sua prática terapêutica do que pelas suas teorias. Maior impacto terá, sem dúvida, Jessie Taft que publica em 1933 o livro "The Dynamics of Therapy in a Controlled Relationship" que Carl Rogers considerará como uma obra prima, quer ao nível da forma quer do conteúdo literário. Progressivamente, Rogers abandona uma orientação directiva ou interpretativa, optando por uma perspectiva mais pragmática de escuta dos clientes, numa posição precursora do que mais tarde estruturará como Orientação Não Directiva em terapia.

A partir de 1935 começa a leccionar no Teachers’ College, mas não vê nem o seu ensino nem o seu estatuto de psicólogo reconhecido pelo departamento de psicologia da faculdade e só muito mais tarde, após vários anos de ensino nos departamentos de sociologia e psicopedagogia, e quando já está para abandonar Rochester, o departamento de psicologia o reconhecerá como psicólogo e como docente.

Em 1938, Carl Rogers entra de novo em "guerra" com os psiquiatras. O Centro, em que trabalha e que dirige, transforma-se e amplifica-se e o conselho de administração sob a pressão dos médicos psiquiatras, decide, como então era tradição, contratar para director um psiquiatra, apesar de estarem satisfeitos com o trabalho que Rogers até então realizara. Carl Rogers luta vivamente e consegue ser reconhecido como primeiro director do novo Centro de Aconselhamento de Rochester.

Em 1939, publica o seu primeiro livro: "O tratamento clínico da criança-problema no qual expõe o essencial das suas reflexões e pesquisas realizadas até esse momento. Com a publicação desse livro começa a ser conhecido na qualidade de psicólogo clínico e é convidado para professor catedrático da Universidade de Estado do Ohio, sendo da sua responsabilidade a cadeira de "Técnicas de Psicoterapia".


O período de 1945 a 1957 é para Carl Rogers muito rico quer do ponto de vista humano quer do ponto de vista científico, publicando extensa bibliografia e, mais particularmente, o livro "Terapia Centrada no Cliente onde, com a colaboração da sua equipa, faz o ponto das suas pesquisas e reflexões. No entanto, entre 1949 e 1951, Carl Rogers atravessa um período de profundo sofrimento, pois, após ter vivido momentos de extrema dificuldade no processo psicoterapêutico de uma paciente esquizofrénica, passa por um período de depressão afectando a sua capacidade de trabalho e de funcionamento. Finalmente, aceita a ajuda de um dos seus discípulos, Ollie Bown, com quem faz uma psicoterapia pessoal, experimentando nele mesmo a eficácia do seu modelo, o que lhe proporcionou um longo percurso de "crescimento" pessoal que nunca mais o abandonou.

O seu nome começa a ser bem conhecido e é convidado por várias Universidades para ensinar como professor convidado (UCLA, Harvard, Berkley, Brandeis, etc.) e, mais particularmente, em 1957 pelo Departamento das Ciências da Educação da Universidade de Wisconsin onde, após uma experiência de alguns meses, acaba por se instalar. Durante os sete anos que vai durar a sua permanência nessa Universidade, Carl Rogers e a sua equipa fazem um esforço colossal de pesquisa na área da psicoterapia dos doentes esquizofrénicos, publicada, no essencial, em 1967, no livro "A relação terapêutica e o seu impacto".

No Verão de 1961, Carl Rogers faz uma longa viagem ao Japão onde é recebido calorosamente e onde estabelece laços de amizade e de partilha profissional que considera como muito enriquecedores. Nesse mesmo ano publica o livro "Tornar-se pessoa que rapidamente se torna um best-seller mundial. Nesse livro Carl Rogers explora a aplicação dos princípios da terapia centrada no cliente a outros domínios do humano - educação, relações inter-pessoais, relações familiares, comunicação intergrupal, criatividade — e apresenta a sua abordagem como uma filosofia de vida, uma "maneira de ser" ("a way of being"), com profundas implicações e aplicações em todos os domínios do humano. Foram vendidos quase um milhão de exemplares desta obra.

Rogers investe cada vez mais no trabalho com os grupos de encontro. O interesse pelos grupos já tinha começado em 1946-47, sensivelmente ao mesmo tempo que Kurt Lewin o havia feito no National Training Laboratories em Bethel.

Em 1971, em colaboração com o filho David e Orienne Strode, Rogers desenvolve o "Human Dimension Project" para utilização dos grupos de encontro na educação médica e na formação à relação médico-doente. A sua atenção dirige-se também de maneira prioritária, nesta época, para o campo da educação, propondo uma pedagogia centrada no aluno, experiencial. Esta pedagogia aparece como tendo muitos pontos comuns com a que Paulo Freire proporá como "educação não bancária", apesar de Carl Rogers ainda não ter, nesse momento, conhecimento do trabalho de Paulo Freire. A Pedagogia Experiencial é objecto de um grande número de trabalhos de pesquisa que se encontram parcialmente descritos nos dois grandes livros: "Liberdade para Aprender", publicado em 1969, e "Liberdade para Aprender nos Anos 80", publicado em 1983. O essencial da sua mensagem consiste no facto de que os alunos aprendem melhor, são mais assíduos, mais criativos e mais capazes de solucionar problemas quando os professores proporcionam o clima humano e de facilitação que Carl Rogers propõe.

Com 70 anos, Carl Rogers é o primeiro psicólogo americano a receber os dois maiores galardões da Associação Americana de Psicologia, tanto pelo seu contributo científico como pelo seu contributo profissional.


Carl Rogers faz uma análise do sucesso das negociações de Camp David, em 1978, entre Israelitas e Egípcios em termos de dinâmica de grupo de encontro e propõe essa formula para a resolução dos conflito sociais e políticos. Recordemos que o "modelo de Campo David" é aplicado de novo em 1995, com relativo sucesso, para pôr fim, esperemos que definitivamente, ao conflito armado da Bósnia e de novo em 1998 para dar um novo impulso aos acordos de paz no médio oriente. Rogers facilita, em 1985, em Rast, na Áustria, um workshop com 50 líderes internacionais, incluindo o ex-presidente da Costa Rica, embaixadores e pessoas de grande influência política e diplomática, tendo como objectivo trabalhar, segundo o modelo dos grupos de encontro, na problemática das tensões, então muito fortes na América Central.

Carl Rogers investe cada vez mais nos últimos anos da sua vida na investigação, empenhando-se em grandes workshops transculturais, ou de esforço pela paz e, finalmente em 1987, o seu nome faz parte do grupo das personalidades indicadas para a atribuição do prémio Nobel da Paz. Infelizmente a morte colheu-o antes, num momento em que, apesar da sua idade avançada, continuava perfeitamente lúcido, extremamente activo, e gozando plenamente da vida em todos os domínios desta e, como ele dizia aos seus amigos mais próximos, como nunca o fizera antes. Estes últimos anos foram também marcados, sobretudo após a morte de sua esposa Helen, em Março de 1979, por um maior interesse pela dimensão espiritual do homem, pela sua integração numa globalidade que o transcende e que se insere numa harmonia global do universo. Toma consciência da importância da dimensão da "presença" na terapia, que ele associa a uma forma de comunicação transpessoal e na qual a intuição tem um papel importante. Apresenta-a como um novo campo a explorar no âmbito da sua abordagem e no domínio daquilo que se poderia chamar, talvez, os estados alterados de consciência.

Assim, de uma certa maneira, o circulo se fechara. Dos primeiros interesses e empenhos numa teologia e numa carreira pastoral, Carl Rogers chega ao fim da sua vida a um interesse renovado pelo campo do espiritual no homem, mas num espírito de liberdade e de tolerância, muito longe da visão fundamentalista e estreita da sua juventude. Guardara talvez o aspecto proselitista, a confiança indestrutível num futuro melhor, não ignorando, como ele fez questão de sublinhar em numerosas ocasiões, toda a miséria, dor, sofrimento e mal que nos acompanham na nossa peregrinação.



* João Hipólito, doutorado em medicina, psiquiatra, pedopsiquiatra e psicoterapeuta, é professor catedrático de psicopatologia e director do Departamento de Psicologia e Sociologia da Universidade Autónoma de Lisboa. É vice-presidente da Associação Portuguesa de Psicoterapia Centrada na Pessoa e de Counselling.

domingo, 23 de dezembro de 2007

Pessoas sérias, assuntos sérios




O que tinham em comum a poetisa paulista Francisca Júlia e o Reverendo anglicano Chad Varah?


Em 1962 o jovem Jacques André Conchon recebeu um bilhete de Edgard Armond, o “Comandante” e Secretário Geral da Federação Espírita do Estado de São Paulo. Em estilo direto e lacônico, bem ao estilo espartano de Armond, o bilhete vinha acompanhado de um pequeno recorte de jornal e dizia: “Para quem está disposto a servir essa é uma boa oportunidade”. A nota do jornal falava sobre o trabalho de prevenção do suicídio desenvolvido pelos “Samaritanos” de Londres e ele se referia no bilhete ao compromisso assumido pelo jovem discípulo e sua turma formada na Escola de Aprendizes do Evangelho. Pelo currículo iniciático da Escola os alunos que cumpriram as fases teóricas do curso deveriam colocar em prática uma atividade para exemplificar o Espiritismo na sociedade. Era a prova de fogo!

Ansioso por algo novo e significativo, o jovem líder da turma vivia importunando o Comandante para indicar um rumo. O Norte foi dado e assim teve início o CVV, Centro de Valorização da Vida. O assunto era grave, delicado e havia sido abordado pelo Espírito Camilo Castelo Branco através da médium Yvonne Pereira, no livro “Memórias de um Suicida”, permanecendo engavetado por vários anos. Agora chegara a hora. Na Europa o Reverendo anglicano Chad Varah já havia dado os primeiros passos em 1948, quando recebera uma paróquia para dirigir no início da sua carreira sacerdotal. Chad soubera do suicidio de uma menina de 14 anos, que se matara por confundir sua menstrução com uma doença venérea. Não teve dúvida: o problema era desiformação, tabú, solidão, e comunicou imediatamente num anúncio de jornal o número do telefone da igreja e sua disponibilidade em “conversar com pessoas sérias sobre assuntos sérios”. No outro dia já recebia a visita de alguém que havia atravessado o Canal da Mancha somente para conversar. Jacques também não sossegou enquanto não encontrou Chad para conversar. Atravessou o Atlântico para o conhecer o futuro amigo , um padre anglicano que seduziu o jovem espírita através da parábola do Bom Samaritano. A relação entre eles se estendeu por décadas, cada qual com a sua crença religiosa. O segredo da longa e profícua amizade é que Chad havia aprendido com a experiência que o trabalho de prevenção do suicídio não deveria ter bandeira religiosa, pois os seres humanos com esse tipo de risco de vida não dão tanta importância para as suas crenças e sim para as questões mais íntimas que os atormentam. A consciência sempre fala mais alto do que a filosofia. Como Chad, ao voltar ao Brasil o engenheiro Jacques foi estudar psicologia. Queria entender melhor o ser humano. Mais tarde aprendeu com Carl Rogers e Fernando Pessoa, e também com a experiência, que “entender” é discordar e que o melhor seria “compreender”, “estar com”, falar a linguagem dos sentimentos e das emoções, deixando um pouco de lado as questões intelectuais e sociais das pessoas. Para entender é preciso ser profissional, para compreender basta ser voluntário. Esse era o segredo: disponibilidade, voluntariado, “ócio criativo” há quase meio século atrás...

O CVV seguiu a sua trajetória, superou obstáculos, construiu sua experiência, possui cerca de 4 mil voluntários e hoje é referência mundial em saúde pública. Jacques foi também um dos fundadores da Aliança Espírita Evangélica, em 1973, e grande entusiasta das Escolas de Aprendizes. Hoje é um importante engenheiro ambiental e continua inquieto, em busca de novidades práticas para os alunos das inúmeras turmas das Escolas criadas por Armond em 1950. Chad faleceu no dia 8 de novembro último, aos 95 anos. Tinha ganho da rainha da Inglaterra o título de “Sir”, mas continuava o mesmo, simples e discreto. Eu o conheci quando visitou o posto do CVV em Santos em 1983 e queria saber mais sobre amizade entre ele e o Jacques. Chad dava gargalhadas ao lembrar da grande empolgação do amigo ao vê-lo pela primeira vez em Londres: “Jack queria saber de tudo que fizemos durante anos em apenas algumas horas”. Acho que conseguiu.


Trabalho foi inspirado pelo Espírito Francisca Júlia

O CVV foi um trabalho inspirado por Espíritos de ex-suicidas, neste caso específico a poetisa Francisca Júlia. Segundo alguns relatos mediúnicos, encarnados e desencarnados que atuam nesse setor possuem estreitos laços com o problema. A própria Yvonne Pereira foi suicida em existência anterior. A maioria deles estão vinculados a uma fraternidade denominada “Legião dos Servos de Maria”, que se dedica a socorrer os que partiram para o mundo espiritual através do suicídio. A entidade mantenedora do CVV, a Fraternidade Esperança, como complemento do trabalho dos postos de prevenção do suicídio, construiu no início dos anos 1970 em São José dos Campos a Comunidade Terapêutica Francisca Júlia, espaço criado para atender pacientes carentes com disturbios mentais. Não é um hospital psiquiátrico comum. Guarda consigo essa especificidade de amparar suicidas em potencial, mas segue a trajetória histórica dos hospitais espíritas, onde os pacientes sempre foram vistos de forma mais humana e sob a dimensão espiritual.


Vida de conturbada de poetisa

"Muito pouco se escreveu sobre o maior vulto feminino do parnasianismo brasileiro. Num universo inteiramente dominado por poetas do chamado sexo forte, Francisca Júlia provou que mulher também sabia fazer poesia de qualidade. Como poucos, criou versos perfeitos e em nada ficou a dever à chamada "trindade parnasiana" (Olavo Bilac, Raimundo Correa e Alberto de Oliveira, que foram seus admiradores e principais incentivadores). Desde a infância, Francisca Júlia já demonstrava pendor para a poesia. O ambiente familiar a isso contribuía: o pai, Miguel Luso da Silva, era advogado provisionado, amigo particular dos livros; a mãe, Cecília Isabel da Silva, professora na escola de Xiririca (hoje Eldorado, no Vale do Ribeira, Estado de São Paulo). Foi nessa aprazível cidade às margens do Rio Ribeira de Iguape que, a 31 de agosto de 1871, nasceu a poetisa Francisca Júlia da Silva. O ano de seu nascimento é um tanto contraditório: alguns citam 1874, outros 1875. De acordo com o irmão de Francisca, o também escritor Júlio César da Silva, a quem devemos dar crédito, o ano correto é mesmo 1871. Transferindo-se com os pais para São Paulo, Francisca Júlia logo passou a colaborar com os jornais mais importantes da época. Sua estréia deu-se no jornal O Estado de S. Paulo, onde publicou seus primeiros sonetos. A partir de então, começou a colaborar assiduamente para o Correio Paulistano e Diário Popular. Colaborou também para jornais do Rio de Janeiro, com destaque para as revistas O Álbum, de Arthur Azevedo, e, especialmente, A Semana.

(...) Em 1909, a poetisa contrai matrimônio com Filadelfo Edmundo Munster, telegrafista da Estrada de Ferro Central do Brasil. A bela cerimônia, que teve Vicente de Carvalho como padrinho, realizou-se na capela de Lajeado, Capital (SP). Nessa ocasião, foi convidada (e gentilmente recusou) a fazer parte da Academia Paulista de Letras, então em vias de ser fundada. A partir desse ano, decide deixar a poesia de lado e se dedicar apenas ao esposo e ao lar (...) Acometido de tuberculose, após demorado tratamento, Filadelfo Munster faleceu em 31 de outubro de 1920. A perda do companheiro tão querido foi arrasadora para a sensível poetisa, cuja emoção não pode conter, em nada demonstrando ser a autora daqueles versos frios, impassíveis. Confessou aos amigos que sua vida não tinha mais sentido sem a companhia do marido e deixou claro que "jamais poria o véu de viúva" (seria uma indicação de suicídio?). Retirou-se para repousar em seu quarto e ingeriu excessiva dose de narcóticos. No dia seguinte, ao abraçar o caixão onde jazia o corpo inerte do esposo, num último e emocionado adeus, Francisca Júlia falecia aos 49 anos. Seu corpo foi enterrado no Cemitério do Araçá, em São Paulo, ao meio-dia de 2 de novembro.

(...) A despeito da importância incontestável de sua obra, Francisca Júlia ainda não ocupa o lugar que lhe é devido no cenário da poesia brasileira, talvez por "esquecimento" dos estudiosos da literatura brasileira e dos críticos literários em geral. Nos livros didáticos adotados nas escolas secundárias e nas universidades, pouco ou nada se encontra sobre a poetisa e sua obra. É uma falta de respeito à sua memória e uma dívida a ser resgatada com a literatura de língua portuguesa".

Roberto Fortes


Noturno

Pesa o silêncio sobre a terra. Por extenso
Caminho, passo a passo, o cortejo funéreo
Se arrasta em direção ao negro cemitério...

À frente, um vulto agita a caçoula do incenso.

E o cortejo caminha. Os cantos do saltério
Ouvem-se. O morto vai numa rede suspenso;
Uma mulher enxuga as lágrimas ao lenço;

Chora no ar o rumor de misticismo aéreo.

Uma ave canta; o vento acorda. A ampla mortalha
Da noite se ilumina ao resplendor da lua...


Uma estrige soluça; a folhagem farfalha.

E enquanto paira no ar esse rumor das calmas
Noites, acima dele, em silêncio, flutua
O lausperene mudo e súplice das almas.



3.000 pessoas por dia cometem suicídio no mundo

Da EFE em Genebra

Cerca de 3.000 pessoas por dia cometem suicídio no mundo, o que significa que a cada 30 segundos uma pessoa se mata, divulgou nesta segunda-feira a Organização Mundial de Saúde (OMS). A agência da ONU disse hoje, por ocasião do Dia Mundial para a Prevenção do Suicídio, que as estimativas revelam que para cada pessoa que consegue se suicidar, 20 ou mais tentam sem sucesso. A OMS estima que a maioria dos mais de 1,1 milhão de suicídios a cada ano poderia ser prevista e evitada. Para isso, é necessário que o Estado adote medidas adequadas e garanta tratamento adequado às pessoas que sofrem de distúrbios mentais.

Segundo a OMS, a média de suicídios aumentou 60% nos últimos 50 anos, em particular nos países em desenvolvimento. O suicídio é atualmente uma das três principais causas de morte entre os jovens e adultos de 15 a 34 anos, embora a maioria dos casos aconteça entre pessoas de mais de 60 anos. A organização lembra que cada suicídio ou tentativa provoca uma devastação emocional entre parentes e amigos, causando um impacto que pode perdurar por muitos anos.

A OMS e a Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio (AIPS) ressaltaram a importância de reforçar todos os programas para identificar e prevenir o comportamento suicida. As duas entidades buscam garantir que o suicídio "não continue sendo visto como um fenômeno-tabu, ou um resultado aceitável de crises pessoais ou sociais", mas como "uma condição de saúde influenciada por um ambiente psicológico-social e cultural de alto risco".

Em 2006, a OMS e a AIPS divulgaram pesquisas apontando que o fator que mais predispõe ao suicídio é a depressão, mas que muitos outros aumentam a propensão, como transtornos bipolares, abuso de drogas e álcool, esquizofrenia, antecedentes familiares, contextos socioeconômicos e educacionais pobres ou uma saúde física frágil.

Fonte: UOL – Ciência & Saúde – 10/09/2007 –08:45h

sábado, 15 de dezembro de 2007

Visionários e utopias





Niemeyer e Lúcio Costa, materilaismo diálético e misticismo. Mure e os futuros espíritas "brasiliens".
J. A. Bata, de joelhos, missão de fundar cidades com a força do capitalismo.


O mundo das artes comemora em 2007 o centenário de Oscar Niemeyer, o criador carioca que materializou e imortalizou a Nova Capital no Brasil Central.

Quantos arquitetos e urbanistas tiveram a oportunidade de realizar o sonho de construir uma cidade inteira, partindo da imensidão de terras planas, como se fosse um gigantesco papel em branco?

Considerado uma das dez inteligências mais brilhantes do século XX (reagiu à pesquisa com uma gargalhada dizendo que era tudo mentira), Oscar é um ateu constantemente perseguido pelas grandes interrogações existenciais. Disse que na juventude se sentiu atraído pelo Espiritismo, porém rendeu-se ao materialismo diálético, para ele inegável e mais coerente quando comparado com as injustiças sociais.

Aos 100 anos, rico, famoso, ídolo de várias gerações, o velho arquiteto comunista trabalha muito e ainda encontra tempo para refletir sobre o universo e também sobre as pequenas coisas que causam angústia no ser humano.

Certamente não é um Espírito comum. Especula-se muito sobre suas ligações com a antiga civilização egípcia, sua origem capelina, a genialidade e a rebeldia materialista, a parceria técnica e ideológica com Lúcio Costa -autor mediúnico do plano piloto (Lúcio contou que recortou o projeto em folhas de jornal ao acordar de um sonho-desdobramento no qual vira a cidade) e com Juscelino Kubtschek, um antigo estadista egípcio reencarnado no Brasil, construtor de Ataon, cidade no interior do Egito que guarda muitas semelhanças com Brasília. Verdade ou não, aí está o homem e a obra, contraditóriamente mística e religiosa, que impressiona a todos.

Em 1986, visitando Brasília na companhia de um colega judeu de Nova York, entramos na famosa catedral projetada por alguém que diz não ter fé, nem aceitar a possibilidade da vida eterna. Depois de observar todos os detalhes possíveis da construção, o meu colega ajoelhou-se e fez uma prece. Disse que não resitistiu e que naquele instante foi impelido a recordar suas raízes culturais perdidas na pós-modernidade. Esse meu colega era Seth Levy e eu o chamava de “Seth, o capelino”. Ele reagia com ironia, mas ficava pensativo.

Jan Antonin Bata

O Brasil, que os índios chamavam de Pindorama (Terra de Sonho e de Graça) sempre foi alvo de visionários em todas as épocas. Dizem que todos eles foram enviados ou estimulados por Ismael, o Espírito-Guia da Nação, cuja tutela segue rigorosamente a idéia de caracterizar o país como refúgio de banidos e perseguidos, campo de esperança e fraternidade de todos os povos, a nova árvore do Evangelho.

Na mitologia jucaica, Ismael, filho de Abraão com a escrava Hagar, foi banido da tribo e vagou no deserto até encontrar o oásis do qual erigiu uma nova civilização. O Brasil colonial deu seus primeiros passos com os degredados e marginalizados da pensínsula ibérica, descendentes de mouros e judeus convertidos.

No século XIX um desses perseguidos e banidos foi o socialista utópico Benoît-Julles Mure,genro de Fourrier e fundador do Falanstério do Say, em Santa Catarina. Mure trouxe para o Brasil a medicina homeopática, o magnetismo e indiretamente as bases do Espiritismo. Junto com ele em 1842 vieram alguns espiritualistas selecionadoss pelo Prof. Jobard, como por exemplo Leclerc e Canu, mais tarde membros da Sociedade de Estudos Espíritas de Paris,conhecidos como "les brasiliens". Mure pretendia criar aqui , e de pois na África, o "Armanase", que em sânscrito significa "império da inteligência".

No século XX surgiu a figura de Jan Antonin Bata, empresário de origem checa e dono do império eslavo da indústria de couros e calçados. Bata acreditava que sua missão no mundo era criar cidades e grandes oportunidades. Ao contrário de Niemeyer, via o capitalismo como instrumento de justiça e prosperidade. Planejava e construía colônias para funcionários de suas fábricas e queria espalhar esse conceito transformador pelo mundo inteiro.

Banido pela onda soviética do leste europeu que atingiu a Checoslováquia, Bata veio aportar no Brasil, onde residiu até sua morte em 1965. Nesse período traçou grandes planos e muitas realizações. Comprou a Companhia de Viação São Paulo-Mato Grosso, mais tarde encampada por Vargas durante o Estado Novo. A empresa construiu e habitou 22 núcleos urbanos, semelhantes aos que existiam na Europa: Prudentina, 2.500 habitantes; Regente Feijó, 19.000; Indiana, 6.500, Sucuri, 800; Caiabú, 1.500; Ouro Branco, 1.200; Boa Esperança D´Oeste, 100; Boa Esperança, 300; Mariapolis, 10.000; Vila Alegrete, 3.500; Mandaguary, 800; Jacaré, 800; Carrapicho, 9.500; Anhumas, 5.000; Laranja Doce, 1.000; Olaria Barrinha, 350; Olaria Bartira, 200; Formoso e Rancharia, 200; Celeste, 800 e Batatuba, 650, Porto Tibiriçá, 400; Bataguassú, 3.000, todos no Estado de São Paulo e no Estado de Mato Grosso.

Atualmente existe na Europa e no país de origem de Jan Antonin Bata o renascimento e o resgate da memória do empresário que certamente estava muito à frente do seu tempo. Daí a incompreensão, as perseguições e os fracassos de muitos dos seus projetos. Mesmo assim, sua obra permaneceu intacta e influente como conceito e referência de inovação e empreendedorismo. Sua missão de fundar cidades, tal como acreditava, foi amplamente cumprida, mesmo que elas tenham tomado outros rumos dos projetos originais, pois existiram, geraram a cultura e a mentalidade progressista em todas as pessoas que alí nasceram, viveram e buscaram a felicidade. O Porto Tibiriçá, lugar onde eu nasci, e todo seu povo, recebeu muito dessa influência utópica batoviana. Tibiriçá não existe mais no mapa, mas sobrevive em nós como conceito de vida e sonho de um mundo melhor.
Para saber mais consulte: portotibirica.blogspot.com - postagem “ A utopia e a obra de Jan Antonin Bata”

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O Problema do Sectarismo



“Os seres humanos modernos (Homo sapiens) evoluíram mais rapidamente nos últimos 40 mil anos do que nos 6 milhões de anos desde que hominídeos e chimpanzés se separaram de um ancestral comum. Anatomicamente, foi uma evolução bem menos perceptível do que a que nos transformou em animais bípedes, com postura ereta e cérebros avantajados

(...) Os europeus ficaram mais claros, mais loiros e com olhos mais azuis nos últimos 5 mil anos, disse o antropólogo Henry Harpending, da Universidade de Utah, que assina o estudo. Os resultados, publicados na revista científica PNAS, sugerem que as populações de cada continente se tornaram mais distintas geneticamente nos últimos 40 mil anos - cada uma adaptada a suas condições locais. Estamos nos tornando menos parecidos e não convergindo para uma humanidade única, homogênea, diz Harpending”.

Fonte: jornal O Estado de S. Paulo

Comentário de Alan Kardec

“Embora isto fira o seu orgulho, o homem deve resignar-se a ver em seu corpo material o último elo da animalidade sobre a terra. O inexorável argumento dos fatos aí está, e será em vão levantar protestos contra tal situação” – A Gênese, 1868


Diálogo inter-religioso

Já que a Humanidade está se tornando cada vez menos parecida e mais heterogênea, naturalmente as idéias tendem para a diversidade e pluralidade.

A pergunta é a seguinte: os espíritas estão preparados para conviver com as diferenças?

Religiosos ou não religiosos os espíritas têm um grande desafio pela frente: eliminar do seus quadros íntimos e institucionais o germes do fundamentalismo e do sectarismo. Como ex-católicos ou ex-ateus, somos todos herdeiros da intolerância.

Nas conferências ministradas no programa “A Invenção do Contemporâneo” , realizado no Espaço Cultural CPFL e exibido pela TV Cultura de São Paulo, assistimos uma aula sobre o assunto, dada pelo teólogo católico Faustino Ferreira. Na sua exposição ficou bem clara a dificuldade que os religiosos possuem em mudar posturas e sentimentos negativos em relação às outras crenças. Segundo ele, o diálogo inter-religioso é um longo processo de auto-educação realizado em cinco etapas ou a convergência simultânea de cinco características:

Humildade ou a consciência da nossa vulnerabilidade. Nossa auto-suficiência nos impede de enxergar essa realidade.

Alteridade ou percepção do mistério do outro, o enigma da diferença, que é, ao mesmo tempo, maravilha, agonia e ética.

Fidelidade à raiz e à identidade, que é ser fiel a si mesmo, às nossas referências culturais. Dialogar é ter chão, poder ir e ter para onde voltar.

Busca comum da Verdade. A Verdade é um construção coletiva , uma sinfonia inacabada da qual cada religão possui fragmentos incompletos. Essa busca comum só é possível com a chamada “ecumenia fraterna”.

Aprofundamento da espiritualidade. Esse passo decisivo é o mais complicado, pois significa encontar a paz interior observando as coisas exteriores. Esse aprofundamente não elimina as diferenças, mas realça as semelhanças entre as crenças.


Religião e intolerância

“Por definição, toda religião – toda fé – é intolerante, pois proclama uma verdade que não pode conviver pacificamente com outras que a negam.” – Mario Vargas Llosa


Por definição, está coberto de razão o grande escritor peruano, quando coloca o problema da intolerância religiosa como reflexo da enorme diversidade cultural que caracterizam os povos e espelho das mentalidades que também se diferenciam dentro dos próprios grupos sociais. Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo (11/07/2004), sobre o caráter laico do Estado e da União Européia, ele fala com conhecimento de causa e faz a afirmação acima citada baseando-se na experiência histórica de religiões e filosofias e que foram desviadas de suas bases originais para satisfazer interesses bem distanciados daqueles delineados por seus criadores.

Não importa a relatividade desses conceitos – se religião ou religiosidade, fé ou crença devoção ou adoração – a repercussão desse elemento cultural na mente humana dificilmente poderá ser dissociado do fanatismo, dos impulsos passionais e do radicalismo emocional. Não é à toa que a sabedoria popular ensina que não se deve discutir religião e futebol, se quisermos preservar relações amistosas. Durante séculos fomos educados para a intolerância e para o radicalismo. Preconceitos religiosos foram pacientemente enraizados em nosso psiquismo e no comportamento, como peças estratégicas para preservação de grupos e sistemas ideológicos. Mesmo as grandes lições de fraternidade e tolerância caíram no esquecimento e no universo lendário. O próprio Mahatma Gandhi, figura contemporânea da Era Atômica, parecia em sua época e ainda hoje ser algo inacreditável, saído das páginas de algum livro de mitologia.

Mas somos, como categoria social humana, um complexo multicolorido de ideologias e crenças, seja em forma de partidos políticos, de cultos religiosos, agremiações filosóficas ou estilos de vida que consideramos atraentes e afins com a nossa maneira de ver o mundo, de agir, de pensar e de sentir as coisas. Nesses agrupamentos procuramos respostas, conforto espiritual, aceitação, respeito, reconhecimento, todas as soluções possíveis para resolver os nossos conflitos interiores, nossas carências internas e externas, reparos de danos e traumas, enfim, a busca da felicidade, de um Norte, de uma plenitude, da auto-realização. É por esse motivo, inclusive, que constituímos famílias - não importando qual o modelo - e mantemos viva a imagem do “ninho” ou da “tribo” como símbolos da nossa identidade pessoal e social. Nossos ninhos e tribos continuam sendo o nosso principal endereço existencial, a referência na qual mantemos o pé de apoio para dar todos os passos importantes e decisivos nas experiências vivenciais. Até mesmo as organizações criminosas ou os agrupamentos de hábitos considerados fúteis, quando ameaçados em seus interesses, reagem com suas ideologias, doutrinas, dogmas, tradições, raízes, ídolos, eventos históricos, como armas para justificar e legitimar suas necessidades e suas próprias existências. Vejamos, por exemplo, os recentes acontecimentos de 11 de setembro , onde o terror teve a religião como principal fonte de motivação ideológica. “Mas é uma religião primitiva e atrasada!”, diriam os ateus ou então aqueles outros que julgam que sua religião é superior às demais. Como se o problema fosse a religião em si, quando na verdade é o comportamento sectário embutido historicamente nas religiões e confrarias que alimentam esses flagelos de mentalidade. A intenção dos atentados terroristas foi de ordem política, mas os agentes executores o fizeram por uma causa religiosa, ou seja , a crença de que seriam recompensados num outro mundo por terem agido com renúncia e coragem. Isso é histórico: é só lembrar as monarquias teocráticas de todos os tempos, os tribunais da Inquisição, as cruzadas, o calvinismo europeu, os regimes totalitários nos anos 30 e durante a Guerra Fria.

O grau de intolerância demonstrado por aqueles que hoje se suicidam pela sua crença certamente não é o mesmo daqueles que discriminam, perseguem e expulsam seus companheiros de ideologia, quando estes começam a destoar dos seus pontos de vista, mas as causas são idênticas: a incapacidade de compreender e conviver com a diversidade e de aceitar o princípio igualdade humana como lei universal. Nas situações de conflito, quando o egoísmo e o orgulho predominam como fonte de poder, a igualdade e a humildade passam a ser vistos como valores banais, de pessoas fracas e poucos inteligentes. Quando se trata de conflitos de crença e ideologia, esse fator humano de arrogância e prepotência assume proporções mais violentas, mesmo quando disfarçadas pela polidez institucional, pelas aparências jurídicas, pela hipocrisia das relações artificiais. Temos visto isso acontecer em todas o setores sociais, mas nas agremiações religiosas elas acontecem com mais freqüência e são mais camufladas com um forte teor de hipocrisia. Nesses ambientes de orações, meditações, vibrações, peregrinações, curas, oferendas, cantorias e celebrações, a camuflagem torna-se mais sutil e mais eficiente no jogo de aparências. Aí a mente é capaz de realizar verdadeiros prodígios de dissimulação: sorrir e odiar; orar com a voz mansa e emotiva e, ao mesmo tempo, conspirar criminosamente para eliminar o adversário. Pode parecer chocante, mas é a mesma ginástica ideológica que faz o matador de aluguel rezar de joelhos para pedir perdão antes de cometer o ato insano.

Essa perversão da fé e da religiosidade só tem uma explicação: orgulho e egoísmo. Ninguém consegue abrir mão de posições e posturas, de pontos de vista ou de opiniões quando estão sob o efeito das aparências, da imagem artificial que possuem das coisas e de si mesmos. É uma doença existencial com fortes elementos de ordem emocional, como uma ferida infectada, cuja característica marcante é o hábito sistemático de fugir da realidade e de mentir para si próprio. Quando fingimos ou dissimulamos idéias e sentimentos, com a intenção de ocupar espaço ideológico ingressamos imediatamente num jogo perigoso, de difícil sustentação. Daí ser muito comum e constante o uso de expedientes ardilosos, geralmente incompatíveis com a ética religiosa ou filosófica dos grupos que freqüentamos.

Não é coincidência também que a desilusão pessoal e a decepção com as contradições humanas são a maior causa da deserção dos adeptos desses grupos. Desertamos na medida que caem os mitos, as aparências, as imagens distorcidas: mitos que nós mesmos criamos, aparências que deixamos nos iludir, imagens que construímos com distorções, segundo os nossos próprios interesses inconscientes e limites psicológicos. Quando isso acontece, quase sempre colocamos a culpa nos outros, nos líderes, nas doutrinas, nos acontecimentos, sem jamais avaliar que o nosso ponto de vista é que sempre foi o verdadeiro responsável pela condução dos nossos sentimentos e atitudes. Recentemente tivemos a oportunidade de ouvir as queixas de um militante bem desiludido com os espíritas, com os centros espíritas e com o Espiritismo. Bastante abatido com a derrota em uma disputa na qual, segundo ele, entrou de corpo e alma, em nenhum momento reconheceu o fato de ter se deixado iludir, mas atacou com muita propriedade todas as imperfeições das pessoas e das instituições envolvidas na sua triste história. Nos lembramos dos textos de “Obras Póstumas” e da “Revista Espírita”, mas não tivemos coragem de recomendá-los naquele momento de mágoas e decepções. Um pouco desolados com essa história de poder e glória em uma instituição espírita, fomos nós mesmos nos consolar nas memórias de Kardec, repletas de experiências sobre os problemas da convivência humana. Ali podemos observar como é possível empreender esforços para superar tendências históricas, hábitos culturais e inclinações pessoais que perpetuam o fanatismo e a intolerância. A experiência de Kardec prova que é possível ir além das definições, romper preconceitos seculares e avançar cada vez mais no terreno da liberdade de consciência. Definições não são apenas artifícios de linguagem, mas ferramentas precisas para identificar coisas, circunstâncias e paradigmas predominantes.

Mas é preciso ir além, quebrar paradigmas, ousar, como fizeram os demolidores de preconceitos em todas as épocas. Eram, é claro, pessoas de moral acima do normal e de comportamento diferenciado da média, mas todos tinham algo em comum: eram seres humanos e jamais se deixaram escravizar por idéias e crenças. Muito pelo contrário, atacaram suas próprias culturas nos pontos que consideravam frágeis e ilusórios. Budha atacou o desejo e a sensualidade que contaminava a espiritualidade em seu tempo; Jesus posicionou-se estratégica e heroicamente contra a intolerância, o fanatismo e o comércio das coisas sagradas; Lao-tsé e Confúcio empreenderam suas inteligências contra a corrupção e o comodismo; Comênius e Pestalozzi viram na infância um terreno fértil para plantar as sementes da transformação do tempo futuro e não somente no cultivo das tradições do passado. Allan Kardec demoliu o materialismo e o sobrenatural, reconstruiu a fé e resgatou a religiosidade sem se deixar contaminar pela ingenuidade mística ou se impressionar com os “mistérios” ditos “ocultos”. Martim Luther King, seguindo os passos de Gandhi, desmontou a farsa que encobria em seu país o mito da liberdade e os direitos civis.

Seria de uma grande utilidade se nós, os espíritas, pudéssemos refletir sobre esse assunto e transpormos suas conclusões para os ambientes que freqüentamos e a ideologia que cultivamos como fonte de realização. Podemos avançar as definições e romper paradigmas. Como o Espiritismo não é religião - nesse sentido histórico sectário –, muito menos futebol, podemos discutir tranqüilamente essas delicadas questões ideológicas:

Como temos cultivado o conceito de verdade no Espiritismo?

Como temos lidado com o pensamento divergente?

Temos agido dentro da ética espírita quando atuamos politicamente em suas instituições?

Afinal, nossa fé tem conseguido encarar a razão face a face?

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Ratatouille e o Espiritismo

Paris, cenário de tradições e rupturas.

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Ratatouille é um excelente filme-desenho para entender o Espiritismo e os espíritas: os fenômenos, a ciência experimental, a doutrina filosófica, os adeptos e suas carcterísticas psicológicas, o movimento social, bem como seus inimigos e seus críticos. Como no desenho “Fantasia” de Disney, onde o também ratinho Mickey se vê em apuros com os escolhos da mediunidade, tudo é metáfora da relação transformadora entre vivos e mortos, entre o conhecido e o desconhecido, o natural e o sobrenatural. O cenário é Paris, especificamente a culinária e um restaurante, ideologia e ambiente tão sagrados na França quanto os templos nas culturas religiosas. Quando questionado sobre essa história absurda, o jovem ajudante de cozinha Linguini solta uma frase desconcertante e paradoxal: “ A verdade parece loucura, mas é a verdade. E funciona!” O mesmo jovem , ao ser apresentado como filho de Renata (Renascida), ex-amante e assistente de Auguste Gusteau, diz sobre a mãe morta: “Tudo bem, ela acreditava no céu, vida após a morte, está numa boa!”. Ratatouille é um prato camponês , mistura de culturas antigas do Mediterrâneo que, como a feijoada brasileira, esconde uma simbologia de crenças e práticas sagradas. Os personagens são típicos seres humanos em prova ou expiação, encenando na carne ou fora dela suas peripécias evolutivas. Auguste Gusteau, o imperador do gosto, o dono, o nome do restaurante, agora tradição, está morto. Porém, o Espírito vaga em busca de uma equação existencial pendente. Desencarnou em situação emocional negativa, fruto de uma reação melindrosa e depressiva dos comentários arrasadores de um crítico de culinária, o ultra-exigente Anton Ego. Para resgatar esse desvio de percurso, Gusteau descobre Remy, um rato talentoso, fascinado pela culinária, e que vive numa antiga casa na zona rural, onde mora uma senhora solitária, cujos hábitos e costumes a impedem de perceber que vive em meio a uma multidão de ratos. É o cenário rústico, como em Hydesville, onde as pedras começaram a falar. Remy, o rato, é a circunstância gerada pelo fenômeno, o que está por trás do vento e da tempestade, a verdade que vai levar o Espírito Gusteau ao jovem ajudante Linguini, que será o seu médium de afinidade mais próxima, com quem tem ligações remotas. Na história ocidental Remy foi o bispo de Lyon que converteu a França para o cristianismo, atuando na nobreza ( os reis Clóvis e Clotilde) e também no campensinato. Lyon, berço da heresia cristã e da caridade, foi apontada por Allan Kardec como terra dos verdadeiros espíritas. Kardec nasceu em Lyon, foi criado em Yverdon, porém “renasceu” em Paris. San Rémy, como os Espíritos São Luiz e Santo Agostinho, volta em Ratatoille para difundir a Verdade, pelas vias improváveis dos fenômenos, sacudindo os dogmas e as tradições do Velho Continente. Linguini, o ajudante de cozinha e filho de Gusteau é o médium; o rato Remy é a mediunidade. É o meio e a mensagem. O médium é humano, desajustado, perturbado, completamente confuso sobre si e seu destino. O rato é a faculdade, o potencial, a possibilidade, a mente, o veículo, o objeto inteligente de transposição das idéias de um plano para o outro. Portanto, é a expressão do paradoxo: é repugnante, é inadmissível, indesejável, inconveniente; é o absurdo, a invisibilidade que se torna visível nas circunstâncias mais imprevisíveis e contraditórias. É rato em restaurante! Ninguém quer ver, mas existe! Ou então: só não vê quem não quer! Ao apresentar o Espiritismo para a sociedade parisiense, Kardec imaginou como foco de resistência e reação imediatas as três figuras clássicas do stablishment: o Crítico, o Cético e o Sacerdote. Em Ratatouille eles se manifestam simultaneamente na pele de dois curiosos personagens da trama: o chef Skinner e o jornalista Anton Ego. O chef Skinner é uma referência ao psicólogo norte-americano B.F. Skinner, cujas experiências de condicionamento de ratos serviram de base para as suas teorias do determinismo biológico. O chef Skinner é o herdeiro institucional do chef Augustus Gusteau, ou seja, o restaurante. Essa herança de tradição cartorial, prestes a se concretizar, entra em risco com o aparecimento repentino e inconveniente do jovem filho de Renata, admitido como ajudante por pressão dos outros cozinheiros. Skinner é autoridade eclesiástica na arte culinária, de competência socialmente reconhecida. Porém, como desajuste de personalidade e transtorno de comportamento, não se aceita como baixinho e feio. Tornou-se complexado, perfeccionista, ciumento e não admite em hipótese alguma a doutrina herege de Gusteau, publicada em livro, de que “qualquer um pode cozinhar’. Este é o livro de cabeceira de Remy, o seu “Le Livre des Sprits”. Na ânsia de defender o seu status e seu interesse, o chef Skinner torna-se um manipulador criminoso e, cedo ou tarde, vai se dar mal. Sua paranóia são os ratos, e aquele que o ameaça e o força a cair em si é o rato Remy. Como em toda trama histórica das revelações, ele consegue, no papel infeliz, transformar o Espírito e o médium em foco de escândalo. Afasta a clientela, mas não consegue espantar a curiosidade, nem a verdade. O jornalista Anton Ego é o crítico culinário, terror dos cozinheiros e garçons. Sua fisionomia cadavérica e seus trajes escuros simbolizam a treva, o poder e a corrupção dos sentidos, doenças morais que a medicina e a psicologia tradicionais seriam incapazes de desvendar e curar. Somente o Espírito Gusteau descobre a raiz do seu desvio : um trauma de infância, uma carência materna, simbolizada na busca do sabor ideal, perdido no tempo da memória gustativa. Insaciável, Anton Ego vai ser curado pela mediunidade, pela medicina do espírito, com temperos literalmente “improváveis”. Redimido, torna-se uma pessoa feliz e iluminada, sem perder a classe. E finalmente a sociedade parisiense, os clientes, os funcionários públicos, os profissionais liberais, os cozinheiros, os ratos, os que vêm de cima e de baixo. No cenário social da cozinha e do restaurante, eles são os protagonistas afetados pelas transformações geradas na trama. As mudanças não vão atingir suas posições e condições sociais, mas suas condições íntimas, suas equações pessoais, limites e obstáculos que os impedem de avançar na evolução espiritual. Colette, a garota cozinheira rebelde; os cozinheiros e garçons, ex-criminosos ou ex-viciados, todos operários social e mentalmente reclusos na posição em que estão e nas funções que exercem, para eles humilhantes. Uns estão conformados, outros são resignados; uns sublimam suas experiências como artistas anônimos e outros se rebelam no silêncio doloroso. Mas todos são cúmplices na escola da vida, na família, no trabalho e também no centro espírita.

A tradição, o nome, o templo, a crise...

O Espírito e a mediunidade.

O treinamento do médium.



A revelação do fenômeno.



O crítico, o cético e o sacerdote.



A sociedade, os obstáculos e os limites.



Ficha técnica:

Direção: Jan Pinkava, Brad Bird. Produção: Brad Lewis. Roteiro: Brad Bird, baseado em estória de Brad Bird, Jim Capobianco e Jan Pinkawa Elenco de dublagem e personagens: Patton Oswalt (Remy), Ian Holm (Skinner), Lou Romano (Linguini), Brian Dennehy (Django), Peter Sohn (Emile), Peter O'Toole (Anton Ego), Brad Garrett (Auguste Gusteau), Janeane Garofalo (Colette), Will Arnett (Horst), Julius Callahan (Lalo / François), James Remar (Larousse), John Ratzenberger (Mustafa), Tony Fucile (Pompidou / Inspetor de saúde)

Sinopse:

Na nova aventura animada RATATOUILLE, um rato chamado Remy sonha em se tornar um grande chef francês, mesmo contra os desejos de sua família e do óbvio problema de ser um rato em uma profissão totalmente inapropriada para roedores. Quando o destino o leva aos esgotos de Paris, Remy se vê na situação ideal, bem embaixo do famoso restaurante de seu herói culinário, Auguste Gusteau. Apesar dos aparentes perigos de ser um inadequado – e certamente indesejado – visitante na cozinha de um fino restaurante francês, a paixão de Remy pela arte culinária não demora a colocar em marcha acelerada uma engraçadíssima e eletrizante corrida de ratos que invade o mundo da culinária parisiense. Remy então se sente dividido entre sua vocação e a obrigação de voltar para sempre ? sua prévia existência de rato. Ele aprende a verdade sobre amizade, família e entende que sua única opção é a de aceitar quem ele é realmente: um rato que deseja ser chef de cozinha.

Fonte: Disney – Site Oficial