domingo, 6 de dezembro de 2009

Allan Kardec em 3D


Essa imagem de Allan Kardec foi criada e produzida por Pasquale Giacobelli em outubro de 2009, a partir das conhecidas reproduções fotográficas. É talvez, até agora, a melhor reconstituição histórica da imagem do Codificador do Espiritismo na qual o artista realça todos os detalhes possíveis, principalmente os traços fisionômicos gauleses do Professor Rivail (clique e amplie). Com exeção da jaqueta de couro, que nos pareceu um equívoco da inovação digital, a imagem acompanha curiosamente as características fotográficas anteriores.

Não sabemos qual o interesse de Giacobelli pelo Espiritismo, nem o que motivou a sua escolha, mas certamente esse trabalho de sua autoria vai mudar definitivamente cultura iconográfica espírita. O resultado é surpreendente para todos que estão acostumados com as repetidas reproduções de imagens de Kardec que circulam há décadas nos meios de comunicação. O novo protótipo muda completamente essa realidade e nos dá uma boa noção do que poderemos obter futuramente como recurso ilustrativo na abordagem das temáticas históricas e doutrinárias. Esse tipo de trabalho pode ser, por exemplo, a base de um interessante museu digital itinerante.

Que o artista não se sinta ofendido, muito menos inibido com o uso de sua obra, que daqui para frente será cansativamente citada nas centenas de publicações espíritas espalhadas pelo mundo.

A imagem foi publicada no site da CGS-SOCIETY - Sociedade de Artistas Digitais – cuja página também tem espaço para comentários. As informações colocadas como legenda da imagem estão em inglês e contém alguns pequenos erros de datas e referências.

Segue abaixo o endereço da site :

http://forums.cgsociety.org/showthread.php?t=817561

sábado, 5 de dezembro de 2009

Caminhando por outras praias


Numa noite dessas, fora do corpo físico, fomos a um lugar que nos foi dito ser na região de Campinas, grande cidade do interior de São Paulo. Estávamos na companhia de alguém que não nos parecia estranho e que – como nós – buscava atingir um ponto definido e solucionar algumas dúvidas importantes.

Fomos caminhando por uma imensa área florestal e nos deparamos com uma represa de grandes proporções. Uma ventania não muito forte dava um tom de naturalidade naquele ambiente agitando as águas, formando milhares marolas na superfície. Numa das margens havia uma praia enorme , dessas orlas muito amplas onde a distância entre a água e a terra firme é bem extensa. Em alguns pontos essa distância aumentava ainda mais e percebia-se que a água eventualmente penetrava por entre as árvores ali existentes, muitas palmeiras e coqueiros protegidos por uma densa mata nativa, típica do interior paulista.

Tudo ali nos parecia diferente, tanto no lago quanto na vegetação, mistura de paisagem interiorana com a do litoral. Ao caminharmos pela areia, notamos uma curiosa variedade de frequentadores e estes estavam agrupados por afinidade em diversos pontos da praia. Esses grupos ignoravam completamente uns aos outros e a nossa presença ora era vista com indiferença ou então com alguma estranheza por alguns indivíduos. Porém, entre eles, em cada grupo, havia um contado intenso através de conversas e manifestações de confraternização, embora de forma fútil e distante. Notamos também que as pessoas pertenciam a classes sociais diferentes e que na praia essa diferença se acentuava pela postura que adotavam em determinadas situações. Na aparência física eram todos iguais , mas existia no ar uma certeza ou crença de que eram diferentes e que não podiam se misturar. Havia entre eles a necessidade de afirmarem uma identidade mais forte daquela que aparentavam ter e muitos cultivam pensamentos e sentimentos altamente emotivos sobre as suas origens mais remotas, que simbolizavam em forma de gestos, hábitos, vestimentas, profissões e sobrenomes.

Havia uma atmosfera de ansiedade e expectativa em todos e nós mesmos permanecíamos muito constrangidos por estar ali entre eles, pois não nos identificávamos com nenhum daqueles grupos.

Em poucos instantes já estávamos numa cabana ou chalé no qual conversamos com um rapaz alegre e ao mesmo tempo preocupado com o que estava acontecendo lá fora. A pessoa a quem nós acompanhávamos parecia interrogá-lo tentando obter informações sobre seu passado e ele respondia todas as perguntas com muita habilidade, indicando referências e procedimentos para facilitar o entendimento. Parecia conhecer bem a situação toda e dava detalhes sobre as identidades e afinidades daqueles grupos, que pareciam ser espíritos desencarnados preparando para reencarnar. Parecia também ser o inverso. Um detalhe chamou muito a nossa atenção: a maioria daquelas pessoas parecia estar em estado de perturbação e naquela fase revelavam com muita espontaneidade as suas características pessoais e seus anseios secretos na nova experiência pela qual iriam passar. A aproximação intensa entre os afins era uma forma de compensar a sensação de incerteza e também a insegurança sobre as suas identidades. O convívio ali facilitava a compreensão dos sentimentos que nutriam sobre si mesmos, uma indefinição de suas personalidades. Esse contato social e troca de experiências auxiliava na recomposição das suas individualidades, então dispersas em imagens altamente idealizadas que alimentaram nos últimos tempos.

Em meio à conversa dos dois percebemos que o nosso companheiro de viagem havia se inteirado de algumas situações que lhe causaram forte emoção e agora podia compreender o que estava fazendo ali e que rumo poderia tomar. Parecia ter se reencontrado. E nós continuávamos ainda meio deslocados e um tanto perdidos. Aquela não era a nossa praia, não conhecíamos ninguém além do companheiro, que nos pareceu um amigo de longa data. Talvez fomos solicitados a acompanhá-lo num momento difícil de retorno à carne ou então desencarne, não sabemos certamente. O choque da revelação o recompôs depois de uma sofrida transição.

Acordamos pela manhã com essas cenas todas misturadas na mente e emocionalmente abalados, embora tenha sido uma experiência curiosa e intrigante.

Nos refizemos rapidamente após uma prece.

sábado, 28 de novembro de 2009

Combustível da violência

Degas: O Absinto, 1876


Muito antes do voluntariado se tornar referência no Terceiro Setor, os cursos do CVV já eram obrigatórios para assistentes sociais da prefeitura de São Paulo e muito recomendados
para os trabalhos de relações humanas. Durante anos assistimos a vários programas de seleção desses voluntários e um que jamais esquecemos foi o realizado na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de Santos, no início da década de 1980. Naquela época havia no programa uma aula sobre alcoolismo e toxicomanias , cuja idéia educativa era sempre “entender para melhor compreender”. O expositor foi um conhecido advogado e também voluntário do posto do CVV paulistano da rua Abolição e que naquela noite nos brindou com duas coisas que nunca tiramos da memória: a música de Vinícius de Moraes e Toquinho, “Um homem chamado Alfredo” ( O meu amigo do lado se matou de solidão... porque ninguém o queria, ninguém lhe dava atenção...); e a associação que ele fez entre drogas e violência ao nos ensinar que os usuários de haxixe da região da Turquia eram chamados de “haxixim” e que dessa palavra derivou o termo utilizado no Ocidente para definir a figura do “assassino”.

Desde então as coisas parecem ter piorado, quando se trata do consumo de drogas lícitas e ilícitas, cada vez mais precoce entre jovens e crianças, sempre com a reconhecida omissão e permissão dos adultos.

A simbiose psíquica entre encarnados e desencarnados no consumo de substâncias que causam dependência química sempre foi conhecida entre os espíritas e nas religiões dogmáticas o problema é habilmente transferido para a responsabilidade de forças demoníacas (não deixam de ser). Os relatos mediúnicos sobre esse assunto (sobretudo de André Luiz e Yvone Pereira) são de um realismo apavorante e mesmo assim, muitos de nós insistem em brincar com as nossas tendências e fraquezas. Nossas idas ao supermercado sempre são aventuras de sedução e resistência quando passamos pelas gôndolas de bebidas alcoólicas, sempre repletas de atraentes variedades e ofertas. Nossa família, de ambas partes, sempre teve uma queda para o alcoolismo e para a boemia. Um dos nossos bisavós (era húngaro, músico e depressivo) – tinha um alambique particular e, depois de desencarnado, sempre acompanhava um dos nossos irmãos que durante a juventude foi um notório beberrão. Segundo nossa mãe, na gravidez de outro irmão nosso, ela sentia um irresistível desejo de beber vinho e a criança que nasceu dessa longa agonia desde cedo demonstrou forte atração para o vício. Aos seis anos, no sítio do nosso outro avô, tomou escondido uma garrafa inteira de Cinzano, que era também um vício do vovô, sendo os dois muitos afeiçoados. Esse nosso irmão já nasceu alcoólatra e milagrosamente parou de beber aos 30 anos ao voltar de um coma. Temos um amigo que, apesar de ser trabalhador e muito afetuoso, é um beberrão inveterado. Devoto de nossa Senhora de Aparecida, vivia nos dizendo que os Espíritos não existiam. Já sofreu vários acidentes de carro por estar embriagado e nós mesmos já fomos socorrê-lo em dois deles nos quais os automóveis foram totalmente destruídos e nos quais saiu praticamente ileso. Ele atribuiu a sua sorte ao Terço que carrega no retrovisor do carro, mas continua bebendo sem o mínimo cuidado consigo e com os outros. Esse mesmo amigo ao vir em casa ficava admirado com a quantidade de livros e o interesse da nossa família pelas leituras. A esposa dele reclamava que os filhos não gostavam de ler e nós não perdíamos a oportunidade de dizer que eles seriam futuros bons bebedores porque a estante da casa deles era forrada de garrafas de whisky. Ela concordava e ele ficava quieto, sorrindo cinicamente.

Outro dia tive desejo de comprar um garrafa de conhaque. Já vinha com esse desejo sendo cultivado há algum tempo. Comprei. Coloquei em cima da geladeira esperando uma frente fria para saboreá-lo “socialmente”, em pequenas doses. Nesse ínterim tive um sonho impressionate no qual via sob um lago muito amplo muitas pessoas e animais mortos por caçadores. Todos, pessoas e bichos, estavam de olhos abertos, porém estáticos. Havia também muitas placas de trânsito submersas, amarelas e enferrujadas. Acordei agoniado. Fui até cozinha peguei a garrafa de conhaque e despejei-a na pia. “Cena típica dos alcoólatras em conflito consigo mesmos”, diriam os especialistas. Estão corretíssimos. Mas naquele sonho tinha algo mais que a vã filosofia e cética medicina ainda estão longe de compreender.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Oportunidade no momento certo

Certa ocasião, no final da década de 1970 , os fundadores de uma nova e conhecida entidade federativa espírita receberam uma mensagem dos Espíritos sobre os rumos que poderiam tomar nas suas novas experiências doutrinárias. Eles haviam solicitado ajuda sobre como atuar no campo da comunicação de massa, pois ansiavam atender o grande público-multidão que então já se formara nas principais metrópoles brasileiras. Não tinham muitos recursos e os meios mais conhecidos como rádio e TV ainda eram praticamente inacessíveis nessas condições. A mensagem deveria esclarecer definitivamente o problema. Mas ela veio curta e objetiva:

“Preparem-se, no momento certo vai aparecer a oportunidade que todos aguardam.”
Certamente o conteúdo não agradou à todos, sobretudo os que esperavam uma indicação mais específica do poderia acontecer.

Tempos depois, em plena fase de expansão, o novo movimento doutrinário recebe a notícia de que já estava disponível para concessão um meio alternativo de comunicação. A informação foi dada por um dos próprios membros do grupo que possuía larga experiência em comunicação jornalística e publicitária. Era necessário reunir uma pequena quantia para conseguir a concessão pública e aguardar as regras que seriam brevemente definidas pelos órgãos oficiais reguladores. Era preciso agir rápido e aguardar.

Foi então que , a partir daquele instante, o tom das reuniões do grupo foi se modificando. Pequenas divergências, antes consideradas apenas diferenças estratégicas, passaram a tomar corpo de posicionamento pessoal. Cresce rapidamente a disposição para o afastamento dos pontos convergentes entre dois pólos nitidamente competitivos. Nem mesmo a intervenção experiente de um antigo líder comum a todos eles conseguiu diluir a contenda. Mais tarde decidiram pela cisão e cada um seguiu o seu caminho de idealismo e novos projetos.
Mas que tipo de comunicação alternativa poderia ser aquela?
Tratava-se então de uma nova categoria técnica ainda desconhecida e quase sem uso pelas emissoras brasileiras. O novo modelo emitia ondas em frequência modulada e por isso vinha sendo chamado de rádio FM. Em menos de três anos o sistema explodiu nas grandes metrópoles e o preço das concessões também foram para as alturas.
Poucos se lembraram que os Espíritos tinham realmente falado das rádios FM e que na época da mensagem chamaram-nas discretamente de “oportunidade no momento certo”

Revista Veja, edição de 26 de junho de 1984 - Imagem: Midiacliping

sábado, 7 de novembro de 2009

O fim da religião e o retorno do sagrado

"Angelus", por Jean François Millet, 1857

Renato Ortiz tem sido um dos pensadores mais lúcidos e cautelosos da nossa sociologia contemporânea. Desprendido das visões tendenciosas e dos vícios analíticos ideológicos que marcaram a geração anterior à sua, ele reflete sobriamente sobre a temáticas que tradicionalmente eram rotuladas ou rejeitadas pelos intelectuais acadêmicos, como por exemplo a religião e o sagrado. Para aqueles que acham que o Espiritismo não possui nenhuma relação com a religião e também para aqueles que, num outro extremo, reduzem e transformam o Espiritismo num simples objeto de culto religioso (como diria Herculano Pires “Num bezerro de ouro”, ao comentar o fanatismo dos protestantes em relação à Bíblia), nada como um olhar crítico de quem está de fora e, portanto, muito mais isento do que qualquer um de nós. Das suas Anotações sobre Religião e Globalização” (Revista Brasileira de Ciências Sociais- Vol.16, nº47, outubro de 2001) recolhemos o trecho abaixo, pois que fala inclusive do contexto e das circunstâncias nas quais os Espiritismo foi fundado no século XIX. Pena que não é possível publicá-lo na sua versão integral.

“A relação entre religião e modernidade foi amplamente discutida pelos sociólogos. Desencantamento do mundo, secularização das instituições e das relações sociais, separação entre Igreja e o Estado, emergência da ciência e da técnica enquanto saberes secularizados, enfim, perda da centralidade da religião como elemento de organização da sociedade como um todo. Muito desse debate, quando mal formulado, levou a certos impasses, como a discussão sobre “o fim da religião” no século XIX, e hoje, a meu ver, do “retorno do sagrado”. Não há dúvida de que uma leitura evolucionista do progresso levou inúmeros pensadores a imaginar a religião com um anacronismo. Diante do avanço da ciência, da técnica e da secularização, ela teria os seus dias contados. È bem verdade que o século XIX produziu também alguns sincretismos entre religião e progresso procurando mesclar pólos aparentemente tão díspares, penso em Auguste Comte e seu culto da Humanidade, e nos “fazedores de deuses”, como dizia Lênin, de Lunacharski e Gorki durante a revolução bolchevique. Mas certamente predominou uma visão simplificadora e menos sutil, conferindo à técnica, não uma primazia, mas o poder de eliminar definitivamente as crenças religiosas. No entanto, é suficiente estarmos atentos para compreender que o advento da sociedade industrial não implica no desaparecimento da religião, mas o declínio de sua centralidade enquanto forma e instrumento hegemônicos de organização social. Ou seja, o processo de secularização confina a esfera de sua atuação a limites mais estritos, mas não a apaga enquanto fenômeno social.. Nessa perspectiva, o debate sobre o desparecimento dos universos religiosos é simplesmente inconseqüente. Basta lembrar que Durkheim, quando discutia a supremacia da ciência sobre a religião, dizia que essa última de fato, do ponto de vista explicativo, perdia terreno para o pensamento científico, porém, como a ciência era para ele uma “moral sem ética”, isto é, um universo interpretativo incapaz de dar sentido às ações coletivas, o potencial das religiões, como forma de orientação de conduta, de uma ética de ação no mundo, permanecia inteiramente válido. Na verdade, a modernidade desloca,sem eliminá-lo, o lugar que ela ocupava nas sociedades passadas. O fim do monopólio religioso não coincide, portanto, com o declínio tout court da religião, sua quebra significa justamente pluralidade, diversidade religiosa, seja do ponto de vista individual, seja coletivo (em termos lógicos não há pois necessidade de imaginarmos “o retorno” de algo que nunca expirou). A sociedade moderna, na sua estrutura, é multireligiosa.”

sábado, 31 de outubro de 2009

Sálem e Hydesville

O episódio das Bruxas de Sálem é um dos capítulos mais interessantes da história social da mediunidade, marcada por fenômenos aparentemente anormais e nos quais as pessoas portadoras de faculdades psíquicas são combatidas pelas forças dogmáticas e, quando expostas em público, altamente hostilizadas pela massa em histeria coletiva.

Para os espíritas, cujo olhar diferenciado nos conduz a uma leitura mais tranqüila e não menos curiosa desses fenômenos, Sálem não foi somente um fato isolado, mas talvez a raiz mais remota dos acontecimentos de Hydesville, ocorridos 156 anos mais tarde. Não estranharíamos se identificássemos em 1848 os mesmos protagonistas de 1692, alguns em papéis invertidos e outros exercendo as mesmas funções que lhes marcaram gravemente as consciências. Os caluniadores, os acusadores e os omissos em Salem voltam ao cenário de Hydesville para ajustar contas consigo mesmos, removendo parcialmente os efeitos do crime que haviam cometido anteriormente. Alguns desses agentes históricos, que tiveram comportamento exemplar em 1692, agindo com equilíbrio e senso de justiça, talvez se dispuseram a voltar espontaneamente para ajudar os antigos criminosos nas provas dolorosas de Hydesville e também contribuir para o advento da nova revelação que se desdobraria da América para os quatro cantos do mundo.

1692 entrou para a história social da intolerância religiosa e 1848 também teria a mesma finalidade histórica, com a diferença de que este último estaria relacionado a um contexto muito mais amplo e de grande repercussão universal, como planejaram os Espíritos Superiores.

As irmãs Fox, mediunidade de prova a serviço da nova revelação

As Bruxas de Sálem


"É uma certeza que o demônio apresenta-se por vezes na forma de pessoas não apenas inocentes, mas também muito virtuosas". Rev. John Richards, século XVII


Mister Parris, o pobre reverendo de Sálem, estava exasperado. Betty, a sua única filha de apenas nove anos, acometida por uma série de estranhos espasmos, jogou-se petrificada sobre o leito, negando-se a comer. Naquela perdida cidadezinha, ao norte de Boston, não existiam muitos recursos além de um velho médico que por lá se perdera. Chamado para diagnosticar a doença, atestou para o aterrado pai que menina estava era enfeitiçada e que nada lhes restava a fazer além de uma boa e sincera reza. A conclusão do doutor correu de boca em boca e em pouco tempo os pacatos habitantes do pequeno porto tomaram conhecimento de que Satanás resolvera coabitar com eles.

Simultaneamente outras garotas, as amiguinhas de Betty, começaram a apresentar sintomas semelhantes aos da filha do clérigo. Rolavam pelo chão, imprecavam, salivavam, grunhiam e latiam. Foi um pandemônio. Pressionado a tomar medidas, Parris resolveu chamar um exorcista, um caçador de feiticeiras, que prontamente começou sua investigação.

No século XVII poucos punham em dúvida a existência de bruxas ou de feiticeiras porque uma das máximas daqueles tempos é de que "é uma política do Diabo persuadir-nos que não há nenhum Diabo".
Interrogadas por Cotton Mather, que iria se revelar uma versão americana do inquisidor-mor Torquermada, as garotas contaram que o que havia desencadeado aquela desordem toda foram uns rituais de vodu que elas viram Tituba fazer. Tratava-se de uma escrava negra que viera das Índias Ocidentais e que iniciara algumas delas no conhecimento da magia negra. Durante o último longo inverno da Nova Inglaterra, ela apresentara várias vezes os feitiços para uma platéia de garotas impressionáveis. Educadas no estreito moralismo calvinista e no ódio ao sexo que o Puritanismo devota, aquele cerimonial animista deve ter despertado as fantasias eróticas nelas. Provavelmente culpadas por terem cedido à libido, ou apavoradas por sonhos eróticos, as garotas entraram em choque histérico. Seja como for o caso merecia ser ouvido num tribunal. Toda a cidadezinha se fez então presente no salão comunitário.
Quando colocadas num tribunal especial, presidido pelo juiz S.Sewall, e inquiridas pelos juizes Corwin e Hathorne, as meninas começaram a apontar indistintamente para várias pessoas que estavam na sala apenas como curiosas. O depoimento mais sensacional foi o da escrava Tituba, que não só confessou suas estranhas práticas como afirmou que várias outras pessoas da comunidade também o faziam.
A partir daquele momento a cidadezinha, que já estava sob forte tensão, se transformou. Um comportamento obsessivo tomou conta dos moradores. Uma onda de acusações devastou o lugarejo. Vizinhos se denunciavam, maridos suspeitavam das suas mulheres e vice-versa, amigos de longa data viravam inimigos. Praticamente ninguém escapou de passar por suspeito, de ser um possível agente do demônio. Não demorou para que mais de 300 pessoas fossem acusadas de práticas infames. O tribunal que entrou em função em junho de 1692 somente parou em outubro. Resultou que dezenove pessoas foram enforcadas.
Deteve-se a execução quando as denúncias envolveram figuras eminentes da colônia, tal como a esposa do governador de Massachusetts e o pastor Samuel Willard, presidente do Harvard College (*). Enquanto a arraia-miúda foi enclausurada, acusada de práticas escusas, poucos se indignaram. O basta naquilo tudo foi dado quando os dedos dos fanáticos ousaram apontar para a elite local. Ainda em 8 de outubro de 1692 circulou uma carta redigida por um intelectual da região, Thomas Brattle, que se horrorizara com os enforcamentos, revelando a loucura coletiva que tomara conta dos aldeãos. Segundo Perry Miller, que estudou as idéias que circulavam pelas colônias americanas daquele século, a letter de Brattle teria sido o primeiro documento iluminista produzido na América do Norte, pois criticou veementemente os prejuízos do fanatismo religioso. Entre outras coisas Battle escreveu: "temo que os anos não apagarão esta desgraça, esta nódoa que essas coisas lançaram sobre nossa terra". E os processos dos endemoniados de Salém assim como começaram, num repente terminaram.
História - por Voltaire Schilling

sábado, 17 de outubro de 2009

O Deus dos cínicos e dos medrosos

Com o seu novo livro, Caim, José Saramago volta a infernizar a vida dos religiosos. É a especialidade dele, um descrente convicto e profissional. A convicção não é verdadeira, é claro. Trata-se, segundo a teoria dele mesmo, de um mecanismo de defesa do “cérebro”, em operação idêntica àquela que mantém a crença em Deus. Suas declarações são desconcertantes e provocam a irritação dos mais emotivos e sectários, que no fundo no fundo não possuem fé suficiente para sustentar essa opinião tão delicada em tempos pós-modernos. Minha filha de 7 anos já me disse que não tinha certeza se Deus existe. Fiquei chocado por alguns segundos e logo tratei de me posicionar dizendo a ela que essa idéia não está à altura de seres humanos como nós e que certamente um dia vamos compreender Deus de forma diferente de tudo isso que vem sendo ensinado sobre Ele. É o que aprendemos no Livro dos Espíritos, que para muitos espíritas ainda funciona – não deveria- como um “catecismo”. O Deus que Saramago tanto detesta realmente só existe na mente dos dogmáticos, sectários e hipócritas. É o Deus do clero, de todas as religiões que tratam o assunto com estupidez e política. Esse Deus é imoral e morreu no século XIX, condenado 100 anos antes pela pena de Voltaire.
O Deus do Espiritismo não é o mesmo Deus da Bíblia vertida para os ocidentais e da cultura dogmática judaico-cristã desenvolvida pelas teologias católica e protestante. Veja a coragem da pergunta de Kardec e a transparência da resposta dos Espíritos. O diálogo que abre o Livro dos Espíritos é direto, franco e não há submissão ou adoração supersticiosa por parte de Kardec. A conversa é dinâmica e os Espíritos estimulam ainda mais a curiosidade, embora recomendem a prudência filosófica. Nosso Deus é o Deus de Zênon(Logos Spermatikos) Sócrates (Pneuma), o de Spinoza e de Einstein ( O Universo pensando). Nosso Jesus também não é mesmo. Nosso Cristo é o educador, o libertador de consciências e não o salvador absoluto e que assumiu irresponsavelmente as nossas responsabilidades sobre os nossos destinos.
Com o advento de novos conhecimentos científicos e a ampliação da nossa capacidade de ler esse novo universo, a nossa concepção sobre Deus vai sofrer mudanças irreversíveis. Nosso respeito pela Divindade vai adquirir um novo sentido e a nossa conduta religiosa um novo significado. Uma coisa é certa: nos ensinaram muitas coisas absurdas sobre Deus e esqueceram de ensinar como manter ideologicamente vivas essa coisas que já nasceram mortas. Precisamos reaprender a ver e adorar a Deus. Os Espíritos já nos ensinaram os primeiros passos. Muitos ainda não conseguem andar sozinhos nesse terreno novo da incerteza. Enquanto isso fazemos preces amedrontadas e com muitas chantagens. Mas já estamos aprendemos a rir das nossas criancices teológicas. Isso é muito importante.

sábado, 10 de outubro de 2009

35 anos

Crepúculo em Cubatão, por Bob Wolfenson

Este ano, em março, fez 35 anos que saímos de Epitácio para morar na Baixada Santista. Achamos que iríamos morar em Santos, mas na verdade fomos para São Vicente, cidade vizinha, tão vizinha que o turista comum não percebe quando passa pelas duas divisas entre elas (na praia do José Menino e no monumento dos tambores , na zona noroeste. Fomos morar num sobradinho na rua Uberaba e depois mudamos para uma casa maior, na rua Rio de Janeiro, onde ficaríamos nos próximos dez anos, entre 1974 e 1984. Seria uma década revolucionária em nossa família, marcada por experiências incríveis e cheias de transformações. Nossa mãe teve essa intuição bem antes e não perdeu a chance quando surgiu a oportunidade. A vida em Epitácio havia atingido o limite para uma família grande e de poucos recursos: cinco filhos jovens com muitos sonhos, mas sem muitas perspectivas. A idéia inicial era irmos para São Paulo, como acontece com a maioria das famílias que passam pela mesma crise, mas optamos por uma cidade que não fosse tão grande como a Capital e não tão pequena como Epitácio. Santos, São Vicente, Guarujá, Cubatão e Praia Grande formam uma grande região composta por cidades medianas. Era a escolha certa e o lugar perfeito. Saímos na madrugada e chegamos no litoral perto do meio dia. Parte da nossa mudança foi levada numa camionete do Jorge Okada. No dia anterior, no feriado municipal de 27 de março de 1974, ficamos no jardim até quase meia noite nos despedindo dos amigos. Estávamos todos eufóricos e apreensivos. Esse sentimento permaneceu durante toda aquela semana de novidades. Bem diferente do que é hoje, São Vicente era muito pequena e funcionava como cidade dormitório. Trabalhar, estudar, fazer compras, tudo era feito em Santos – no Gonzaga ou no centro velho, próximo à zona portuária. Andar nos coletivos era um excelente programa porque todos circulavam a grande Ilha de São Vicente, que inclui Santos e São Vicente. O circular 7 ia pelas praias em direção ao ferry-boate e o circular 8 fazia o sentido inverso. Alguns deles percorriam os canais principais (1 e 2) em direção à Vila Belmiro e ao túnel. Tudo era muito fascinante. Sempre escolhíamos o percurso mais longo, para aproveitar a paisagem. O cheiro de mar e da vegetação litorânea eram muito fortes e completamente diferente de tudo que o nosso olfato conhecia. Além dos pontos turísticos, nossa diversão preferida era ver a entrada dos navios na barra da Ponta da Praia. Navios enormes, de todas as nacionalidades. Também gostávamos muito das visitas aos vasos de guerra e submarinos, nacionais e estrangeiros. Num deles fomos visitar o jovem marujo epitaciano Salvador Miazaki. Tudo isso ia se acumulando no baú das nossas emoções e não víamos a hora de retornar para Epitácio e contarmos tudo em detalhes para os colegas. Isso aconteceu pela primeira vez no mês de julho – que na época estava bem frio. Uns parentes baianos da minha avó tinham sofrido a perda do filho mais velho ( que morava no Morro do São Bento, juntamente com dois irmãos) e fizeram essa viagem de volta com a gente. Levei na bagagem um vidro com água do mar, para mostrar para o Gilmar Saraiva. Em pouco tempo já havíamos adotado um sotaque santista (o abusivo e incorreto uso do “Tu” antes das frases –Tu vai, Tu foi, etc) , logo motivo de muito sarro e indignação dos colegas. Quando chegamos fomos logo procurar a turma no campinho de futebol, num terreno na rua Cuiabá, em frete a Serraria do Lopes. A manhã estava deliciosa, fria e ensolarada, e a maioria da garotada usava aquelas japonas de nylon “dupla face”. A irmã da minha avó Maria, mãe do rapaz morto em Santos, veio para morar em Epitácio. Elas não se viam há mais de 40 anos. Foram morar na chácara do meu avô, na Estrada Boiadeira Norte, próximo da rodovia marginal. Terminadas as férias, voltamos para o litoral, agora com outros olhares e outros projetos. Tudo o que aconteceu certamente daria um livro de memórias com muitos capítulos. Novas experiências, novos vizinhos, novos amigos. Momentos difíceis e coisas maravilhosas, inesquecíveis. De todas elas, a que marcou mais foi a ajuda espiritual – numa reunião de Evangelho - que recebemos de uma entidade feminina desencarnada em Epitácio. Velha amiga da família, ela nos deus conselhos e consolos preciosos nas horas incertas. Estávamos nos preparando para uma segunda etapa de mudanças. Na década seguinte – entre 1984 e 1990, fomos todos para São Paulo para complementar essa primeira fase de transformações.

Vista da orla de São Vicente e Santos a partir da praia do Itararé


Quando fomos morar em São Vicente tinha eu 12 anos de idade. Éramos cinco irmãos e mais um jovenzinho de três meses chamado Natalino, cujo irmão gêmeo Natal havia desencarnado por causa de complicações do parto. Enquanto a mãe estava no hospital lutando pela vida, Natalino e os outros seis irmãos foram colocados sob os cuidados dos nossos familiares até que as coisas voltassem ao normal. Jamais voltariam. A mãe de Natalino também desencarnou. O pai, um oleiro ribeirinho do Porto XV, em completa situação de miséria, recolheu os filhos e voltou para a sua batalha diária. Amigos nossos tentaram adotar os irmãos mais novos, mas o pai não cedeu. A irmã mais velha cuidaria dos menores. Natalino foi o único que não voltou. Para a nossa surpresa, o pai disse que, se quiséssemos ficar com a criança, ele deixaria de bom grado. A nossa mudança para o litoral paulista já estava decidida e não havia nenhum plano de adoção para Natalino. Dias antes da mudança nosso pai chegou em casa com alguns documentos para nossa mãe assinar. Estava consumado. Natalino era o mais novo membro da família. Ele havia nascido em 23 de dezembro de 1973 e na tarde de 28 de março do ano seguinte já estávamos descendo pelas curvas da Via Anchieta em direção à Baixada Santista. Tudo foi muito rápido e assustador para os adultos, porém muito emocionante para as crianças. Nossos pais eram funcionários públicos e optaram pela mudança para aguardar uma nova orientação sobre o futuro profissional deles no Ministério dos Transportes, junto ao porto de Santos. As coisas seguiram o seu curso, mas nossa mãe, de vez enquando, nos dizia que um Espírito feminino muito luminoso visitava Natalino durante a noite. Nossa mãe, filha de retirantes nordestinos, tinha sido criada por Dona Manoela Borges, uma senhora que mais tarde tornou-se madrinha de todos nós e que também havia desencarnado dois anos antes do nascimento de Natalino. Ela era filha de um índia xavante com um desbravador vindo da região de Porto Feliz. Certa ocasião, visitando um tia-avó numa viagem ao interior, nossa mãe recebeu dela, sem que estivesse esperando, a informação que há alguns anos buscava: “Esse menino é parente da Dona Manoela, é o pai dela. Você tem uma dívida com ela e esse menino precisa muito da sua ajuda". Também ficamos sabendo depois que a nossa vinda para São Vicente não tinha sido uma simples escolha. Tínhamos coisas importantes para aprender e realizar na antiga Vila onde em outros tempos tínhamos adquirido as primeiras lições do Evangelho pelas mãos dos jesuítas.



Mapa paulista do final do século XIX: a região oeste permaneceu "milagrosamente" intacta por mais de 300 anos.


Séculos mais tarde, quando a região oeste de São Paulo estava sendo ocupada pelos mineiros (antigos paulistas ou vicentinos), o Capitão Francisco Whitaker, por ordem do governador de São Paulo, lançou-se numa expedição pelos rios Tietê e Paraná com a missão de fundar um porto na divisa com Mato Grosso, na região inóspita do Pontal do Paranapanema. A expedição foi organizada nos mesmos moldes das antigas monções, caravanas de batelões fluviais em busca do sertão distante. A missão foi realizada com êxito e em primeiro de janeiro de 1907 eles desembarcaram na barranca paulista do Paraná e ali fundaram o Porto Tibiriçá. O empreendimento era uma preparação para receber gado de corte da região mato-grossense de Vacaria , que seria conduzido por uma estrada boiadeira entre Tibiriçá e Indiana, a estação mais próxima da Ferrovia Sorocabana, distante 105 quilômetros. A Madrinha Manoela sempre nos contava que o pai dela, seu Daniel, estava na expedição histórica de Francisco Whitaker, o último bandeirante paulista e descendente de vicentinos. São Vicente tinha sido a primeira vila a ser fundada na Capitania , em 1532, e o Porto Tibiriçá a última. Eles haviam completado um ciclo de quase cinco séculos (475 anos). E nós, tibiriçaenses, há exatamente 35 anos, estávamos de volta, ao som das ondas e do cheiro da maresia, agora para aprender na Mocidade e na Escola de Aprendizes do C. E. Irmão Timóteo as lições renovadoras do Espiritismo. Dois anos antes da nossa chegada, em 1972, o grande médium e escritor italiano Pietro Ubaldi despedia-se de São Vicente, cidade que escolhera viver os últimos dias da sua existência e que dizia ser um recanto muito querido do seu velho espírito, desde os tempos do Padre Manoel da Nóbrega.



Maurão, Mia, eu e Bill, jovens músicos do Grupo Manvantara na travessia do Canal de Bertioga , 1981.