Muito antes do voluntariado se tornar referência no Terceiro Setor, os cursos do CVV já eram obrigatórios para assistentes sociais da prefeitura de São Paulo e muito recomendados para os trabalhos de relações humanas. Durante anos assistimos a vários programas de seleção desses voluntários e um que jamais esquecemos foi o realizado na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de Santos, no início da década de 1980. Naquela época havia no programa uma aula sobre alcoolismo e toxicomanias , cuja idéia educativa era sempre “entender para melhor compreender”. O expositor foi um conhecido advogado e também voluntário do posto do CVV paulistano da rua Abolição e que naquela noite nos brindou com duas coisas que nunca tiramos da memória: a música de Vinícius de Moraes e Toquinho, “Um homem chamado Alfredo” ( O meu amigo do lado se matou de solidão... porque ninguém o queria, ninguém lhe dava atenção...); e a associação que ele fez entre drogas e violência ao nos ensinar que os usuários de haxixe da região da Turquia eram chamados de “haxixim” e que dessa palavra derivou o termo utilizado no Ocidente para definir a figura do “assassino”.
Desde então as coisas parecem ter piorado, quando se trata do consumo de drogas lícitas e ilícitas, cada vez mais precoce entre jovens e crianças, sempre com a reconhecida omissão e permissão dos adultos.
A simbiose psíquica entre encarnados e desencarnados no consumo de substâncias que causam dependência química sempre foi conhecida entre os espíritas e nas religiões dogmáticas o problema é habilmente transferido para a responsabilidade de forças demoníacas (não deixam de ser). Os relatos mediúnicos sobre esse assunto (sobretudo de André Luiz e Yvone Pereira) são de um realismo apavorante e mesmo assim, muitos de nós insistem em brincar com as nossas tendências e fraquezas. Nossas idas ao supermercado sempre são aventuras de sedução e resistência quando passamos pelas gôndolas de bebidas alcoólicas, sempre repletas de atraentes variedades e ofertas. Nossa família, de ambas partes, sempre teve uma queda para o alcoolismo e para a boemia. Um dos nossos bisavós (era húngaro, músico e depressivo) – tinha um alambique particular e, depois de desencarnado, sempre acompanhava um dos nossos irmãos que durante a juventude foi um notório beberrão. Segundo nossa mãe, na gravidez de outro irmão nosso, ela sentia um irresistível desejo de beber vinho e a criança que nasceu dessa longa agonia desde cedo demonstrou forte atração para o vício. Aos seis anos, no sítio do nosso outro avô, tomou escondido uma garrafa inteira de Cinzano, que era também um vício do vovô, sendo os dois muitos afeiçoados. Esse nosso irmão já nasceu alcoólatra e milagrosamente parou de beber aos 30 anos ao voltar de um coma. Temos um amigo que, apesar de ser trabalhador e muito afetuoso, é um beberrão inveterado. Devoto de nossa Senhora de Aparecida, vivia nos dizendo que os Espíritos não existiam. Já sofreu vários acidentes de carro por estar embriagado e nós mesmos já fomos socorrê-lo em dois deles nos quais os automóveis foram totalmente destruídos e nos quais saiu praticamente ileso. Ele atribuiu a sua sorte ao Terço que carrega no retrovisor do carro, mas continua bebendo sem o mínimo cuidado consigo e com os outros. Esse mesmo amigo ao vir em casa ficava admirado com a quantidade de livros e o interesse da nossa família pelas leituras. A esposa dele reclamava que os filhos não gostavam de ler e nós não perdíamos a oportunidade de dizer que eles seriam futuros bons bebedores porque a estante da casa deles era forrada de garrafas de whisky. Ela concordava e ele ficava quieto, sorrindo cinicamente.
Outro dia tive desejo de comprar um garrafa de conhaque. Já vinha com esse desejo sendo cultivado há algum tempo. Comprei. Coloquei em cima da geladeira esperando uma frente fria para saboreá-lo “socialmente”, em pequenas doses. Nesse ínterim tive um sonho impressionate no qual via sob um lago muito amplo muitas pessoas e animais mortos por caçadores. Todos, pessoas e bichos, estavam de olhos abertos, porém estáticos. Havia também muitas placas de trânsito submersas, amarelas e enferrujadas. Acordei agoniado. Fui até cozinha peguei a garrafa de conhaque e despejei-a na pia. “Cena típica dos alcoólatras em conflito consigo mesmos”, diriam os especialistas. Estão corretíssimos. Mas naquele sonho tinha algo mais que a vã filosofia e cética medicina ainda estão longe de compreender.
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