sexta-feira, 28 de março de 2008

O Dossiê Canuto Abreu

Silvino Canuto Abreu e J. Herculano Pires, à esquerda, compondo a mesa no evento dos 100 anos de O Livros dos Espíritos


Figura ímpar de vasta cultura e erudição, o Dr. Silvino Canuto Abreu certamente foi uma das pessoas que mais contribuíram para a preservação da memória do Espiritismo. Sua obras são impecáveis, tanto pelo gosto quanto no estilo. Escrevia e falava com fluência os idiomas clássicos e suas principais derivações modernas, o que lhe permitia o acesso aos textos e relíquias literárias da antiguidade religiosa oriental e greco-romana.

Dessa forma ele nos brindou com pérolas do tipo “O Evangelho por fora”, cujas ricas notas excedem a prória narrativa, mas que nos ensina um olhar especial e diferenciado sobre as coisas e a essência da Codificação. Depois que lemos um exemplar presenteado pelo confrade Azamar Trindade, nunca mais usamos a expressão Espírito de Verdade, mas simplesmente “Espírito Verdade”.

No apetitoso “ O Livro dos Espíritos e sua tradição histórica e lendária”, também editado pelo Instituto de Cultura Espírita de São Paulo, nos deliciamos com uma fictícia - ou seria real? - descrição dos acontecimentos cotidianos que marcaram o lançamento do Livro dos Espíritos, no dia 18 de abril de 1857. Conduzindo o relato, o nosso cronista descreve os fatos desde as primeiras horas da manhã, quando o lote da publicação chega para ser exposto na livraria Dentu até as últimas horas da noite, num coquetel comemorativo, reunindo no pequeno apartamento de Rivail e Amélie todas as pessoas que colaboraram diretamente para que edição viesse à público. É um texto perfeito para um roteiro de cinema. Sobre esse episódio Chico Xavier, em relato para Suely Caldas Schubert, disse que, naquela manhã, ao sair da livraria, Kardec encontrou-se com George Sand e ofereceu o seu exemplar histórico do Livro para a conhecida escritora e ex-companheira de Chopin.

Temos ainda, com seu toque de genialidade, a tradução da primeira edição do Livro dos Espíritos, feita especialmente para comemorar o 100 anos do evento, em 1957. Também não podemos esquecer seus artigos publicados na Revista Santa Aliança (Metapsíquica), nos quais mergulhamos nas mais remotas raízes da tradição herética lyonesa e nos fatos que as ligam com os adeptos do Espiritismo nos tempos modernos. Com o mesmo talento, biografou o Dr. Bezerra de Menezes, fornecendo ricos subsídios para a história da formação das primeiras instituições espíritas no século XIX.

O Dr. Silvino, na condição de médico e adepto da homeopatia, nos legou também um precioso acervo a respeito das atividades dos fundadores dessa modalidade curativa e suas ligações e afinidades com o kardecismo. Frequentou importantes círculos espíritas na França, sempre em busca de “novidades antigas” , tendo convivido com o escritor Gabriel Dellane, filho de uma das médiuns de Allan Kardec e produto autêntico da primeira geração de espíritas históricos:

“Assisti a trabalhos por ele presididos. Ouvi suas lições práticas. Suas longas e cintilantes narrativas. Suas discussões, em que às vezes erguia a voz, exaltado pela convicção posta em dúvida, e logo a baixava, sorridente, ao perceber a porta do misticismo, que detestava como cientista.”

Mas de todas as suas contribuições, sempre com grande fôlego intelectual, destaca-se uma revelação pessoal, feita diante de várias testemunhas, cuja versão e repercussão tornaram-se maiores do que o próprio fato. Diante do espanto dessas pessoas, Canuto conduziu-os ao seu escritório e sacou dos seus arquivos os tais textos e aprofundou ainda mais a gravidade da revelação , dado ao impacto ali causado na mente dos presentes e suas consequências no universo social espírita. Ele se referia às cartas redigidas por Allan Kardec e dirigidas a Léon Denis contendo denúncias de traição ao Espiritismo contra o advogado J.B. Roustaing.

Para quem alimenta uma imagem sacralizada do Codificador, que era um cientista nato, esta não é uma informação fácilmente compreensível sobre Allan Kardec. Para quem foi educado para cultuar a natureza mística das instituições espíritas, o questionamento científico da figura de Roustaing não combina com a postura serena do mestre lyonês, mesmo que os textos por ele escritos e publicados na Revue digam ao contrário. Acreditam também alguns confrades mais moderados que essa grave questão será esquecida ou melhor compreendida com o passar do tempo. Em todo caso, ela já faz parte da história das nossas controvérsias e merece registro.


Polêmicas que fiquem à parte, pois o que nos interessa realmente é apresentar a fígura clássica de Canuto Abreu aos nossos leitores. Tarefa difícil, já que, sempre que o colocamos em destaque, surge na sua biografia as afinidades e também alguns embates entre ele e algumas personalidades influentes do nosso movimento.


Canuto e Herculano

“Nas comemorações do bicentenário de Allan Kardec, realizadas em Paris em outubro de 2004, ocorreu um fato muito curioso. No congresso internacional preparado para homenagear o nascimento Codificador registrou-se a presença de centenas de representantes de diversos países – a maioria brasileiros – e de médiuns de grande prestígio no movimento espírita brasileiro. Uma grande expectativa estava no ar. Que personalidades espirituais se manifestariam naquele evento histórico? Talvez os Espíritos que colaboraram na Codificação e na Sociedade Espírita de Paris? Talvez Chico Xavier, Emmanuel, André Luiz, Herculano Pires? Ou então Amélie Boudet ou mesmo o próprio Allan Kardec? Nenhum deles. Muitos participantes confessaram uma certa decepção e surpresa com a manifestação já aguardada do Espírito Léon Denis, mas poucos esperavam uma comunicação de Canuto Abreu, um dos maiores admiradores e divulgadores da obra de Kardec e que caiu no esquecimento e na desconsideração de muitos espíritas logo após o fato que iremos relatar. Em 1957, durante as comemorações do centenário da Codificação, o Dr. Canuto tinha reservado uma grande surpresa para a comunidade espírita. Durante anos se empenhou pessoalmente para traduzir a primeira versão de “O Livro dos Espíritos” e publicou, com recursos próprios, uma interessante versão bilíngüe da obra. O nosso caro confrade tinha todas as razões para crer que estava dando uma preciosa contribuição cultural para a memória do Espiritismo. Era considerado o mais erudito dos espíritas e, por isso, foi convidado para discursar na abertura da grande festa organizada pelos paulistas no Ginásio do Pacaembu. Quase dez mil pessoas ouviram, encantadas, a descrição romanceada feita pelo orador sobre o histórico dia 18 de abril de 1857. Na mesa das autoridades estavam Luiz Monteiro de Barros, Paulo Toledo Machado e Abrahão Sarraf, representando a USE; Carlos Jordão da Silva, pelo Conselho Federativo Nacional, os vereadores Freitas Nobre e Matilde de Carvalho; João Teixeira de Paula, do jornal Unificação; Luisa Peçanha Camargo Branco e Eurides de Castro, da comissão organizadora do evento; e Herculano Pires, do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Na foto histórica Canuto e Herculano aparecem lado a lado numa aparente harmonia fraternal. Passados os festejos, Herculano, preocupado com uma possível confusão de diferenças e semelhanças entre as duas edições históricas do Livro dos Espíritos, não conseguiu segurar o seu ímpeto vigilante e publicou um artigo agressivo fazendo pesadas críticas ao trabalho do Dr. Canuto. Extremamente sentido e magoado, o Dr. Canuto Abreu mandou recolher os exemplares da preciosa edição documental. Afastou-se completamente do movimento espírita, apagando-se em triste reclusão e anonimato. Nunca reclamou publicamente da crítica, nem tampouco justificou sua atitude de afastamento. Os exemplares permaneceram guardados no porão de sua residência por mais de meio século, sendo depois resgatado pelo Museu Espírita de São Paulo”.

Nova História do Espiritismo – Dalmo Duque dos Santos. Editora Corifeu. Rio de janeiro.


Relatos da imprensa espírita sobre o assunto
Os Documentos de Canuto Abreu

Os confrades Carlos de Brito Imbassahy (RJ) e Jamil Salomão (SP) divulgaram há alguns anos a notícia de que foram entregues ao Dr. Canuto de Abreu, em Paris, pouco antes de estourar a Guerra de 1939, documentos de Allan Kardec, incluindo cartas suas endereçadas a Roustaing, acusando-o de controverter a ordem doutrinária e de traidor dos postulados espíritas.

Escreveu Carlos de Brito Imbassahy, sob o título "Dr. Canuto de Abreu" ("Mundo Espírita", PR, de 31.08.1980): "Os tempos se passam". Indo a São Paulo em companhia do Olympio (que fazia vez de meu irmão), e da esposa, fomos almoçar com o Dr. Canuto de Abreu; nesta tarde, ele nos leva para os seus arquivos particulares e nos mostra um "dossier" contando-nos a história.

"Estava na França pouco antes de estourar a Guerra de 1939 quando, intempestivamente, fui procurado por dois cidadãos que se apresentaram e se disseram que ali estavam por ordem espiritual. Os cidadãos haviam recebido instrução de seus guias que deveria vir do Brasil uma determinada pessoa em tais circunstâncias que coincidiam exatamente com as minhas (dizia o Dr. Canuto) e que a esse cidadão deveriam ser entregues os arquivos particulares do próprio Allan Kardec, pois a Europa iria passar uma fase conturbada de guerra e, se esses documentos fossem encontrados, seriam destruídos".

Ali estava, diante de mim e de Olympio, a letrinha de Kardec, suas opiniões e um envelope "confidencial-não pode ser publicado". Mostrou-me seu conteúdo dizendo:

"Gostaria de doar este acervo à Federação Espírita Brasileira, mas ela é roustainguista e, na certa, não vai admitir que seja ela própria a portadora de documentos que condenam "Os Quatro Evangelhos" (de Roustaing!).

Disse isso e mostrou-me duas cartas manuscritas onde, por cima, lia-se:

"Carta enviada ao senhor João Batista Roustaing, cartas essas que são um libelo terrível, no qual acusa o "colega" de controverter a ordem doutrinária, deixando-se envolver por mistificadores cujo único objetivo era desmoralizar o sistema de comunicação com os mortos."

Jamil Salomão (CF do ABC, janeiro/1990) escreveu, sob o título "J. B. Roustaing, o Judas do Espiritismo":

"Esta afirmativa é atribuída a Allan Kardec", feita em uma carta endereçada ao insigne escritor Léon Denis, cujo próprio original se encontra em poder do Dr. Canuto de Abreu, conhecido intelectual e espírita da capital de São Paulo, que possuía farto material que pertencia a Kardec. Numa Visita fraterna ao Dr. Canuto, pelos idos de 1974, em companhia do Dr. Freitas Nobre e da médica Dra. Marlene Severino Nobre, ouvimos essas revelações surpreendentes, pois desconhecíamos a existência de um documento de tal importância. Imediatamente foi solicitado ao Dr. Canuto de Abreu permissão para a divulgar o material, bem como obter cópia do mesmo, a fim de ser noticiado no jornal "A Folha Espírita", que estava sendo lançado naquela época, como o primeiro jornal espírita a ser colocado nas bancas públicas e com distribuição nacional. O Dr. Canuto se mostrou temeroso, não permitindo a divulgação da carta de Kardec, na qual atribuía a Roustaing a condição de traidor dos postulados espíritas, ao lançar "Os Quatro Evangelhos", atribuindo-lhes o título de "Revelação da Revelação", o que poderia ser motivo de uma cisão no movimento espírita."(...) Comentário: Quanto ao escrúpulo do Dr. Canuto de Abreu, e agora de seus familiares, em não dar publicidade às cartas de Allan Kardec contra Roustaing, ocorre-nos lembrar à distinta família que, se o plano espiritual se preocupou com a preservação dos documentos de Kardec, incluídas as referidas cartas, não foi para que elas permanecessem desconhecidas do público espírita. É óbvio, caso contrário os espíritos deixariam que tais documentos fossem destruídos pelos invasores alemães, como estava previsto. Com essa atitude, a nosso ver, equivocada, da respeitável família Canuto de Abreu, apenas se exumaram, em Paris, as cartas de Allan Kardec para dar lhes nova sepultura, no Brasil. E perguntamos: Para que? Consultando sobre o paradeiro dessas cartas, informou Carlos de Brito Imbassahy que conforme lhe disseram, elas estariam em poder de um neto do Dr. Canuto de Abreu. Fazemos este apelo a quem guarde estas cartas de Allan Kardec: que as entregue para divulgação, a um jornal de grande circulação, "Correio Fraterno do ABC" ou "Jornal Espírita", a meu ver, os mais credenciados para dar-lhes publicidade.

Espíritas Verdadeiros! Esclareçam-se sobre os erros contidos na obra de Roustaing, estudando uma ou todas as seguintes obras e respectivos autores, indicados por Erasto de Carvalho Prestes, Niterói, RJ (página 2): Luciano Costa ("Kardec e não Roustaing"); José Herculano Pires ("O Roustainguismo à Luz dos Textos"); Júlio Abreu Filho ("Erros Doutrinários"); Ricardo Machado ("Máscaras Abaixo"); Henrique Andrade ("A Bem da Verdade"); Wilson Garcia ("Corpo Fluídico"); Gélio Lacerda da Silva ("Conscientização Espírita"); Nazareno Tourinho ("Retalhos de um Atalho" e "As Tolices e Pieguices da Obra de Roustaing"). "De nada valeu exumar, em Paris, as cartas de Allan Kardec a Roustaing, porque lhes foi dado nova sepultura, no Brasil." Correio Fraterno do ABC, ano XXXII, nº 343 página 7, de Agosto de 1999, sob o título “APELO AOS PARENTES DO DR. CANUTO DE ABREU”, assinada por Gélio Lacerda da Silva.


Mensagem de Canuto Abreu no Congresso de 2004

Allan Kardec!

Este nome é um marco de um tempo novo. É uma legenda de luz e de força moral que edifica um tempo especial de regeneração humana, e que, ao longo de mais de seis décadas, esteve no mundo das formas para materializar os ensinamentos do Mundo Etéreo, junto às almas terrenas.

Alma de escol, sem embargo, Allan Kardec veio ao planeta para representar no campo físico a Equipe Luminosa do Espírito da Verdade, que jorrava claridade sobre o orbe sob a ação venturosa do Cristo Excelso.

Nesse tempo em que o Espiritismo está no mundo, como esplendente Sol diluindo os miasmas da longa noite moral humana, ainda que pouco a pouco, são incontáveis aqueles que vêm recebendo o sustento para viver com entusiasmo, a motivação para prosseguir nas árduas lutas, sem pensar em fugir dos proscênios dificultosos dessas graves experiências das sociedades terrenas.

Quantos se arredaram das idéias suicidas, pelo entendimento de que ninguém morre essencialmente?

Quantos desistiram do abortamento por terem admitido o acinte que tal coisa representa contra as divinas leis de Deus?

Quantos se decidiram por manter iluminada por Jesus a estrutura do lar, ao verificarem sua importância para o progresso familiar?

Quantos se dedicaram a estudar as leis da vida e a estudar-se, anelando o entendimento e a melhoria de si mesmos?

Quantos abriram mão dos preconceitos de raça, de cor da epiderme, de gênero, de cultura e tantos outros, libertando-se dessa forma de ignorância que se demora no seio das sociedades?

Quantos que se esforçam por servir, por amar, desejosos de se tornarem cada vez mais úteis no campo da existência?

Quantos hão renunciado às pressões do homem-velho, na corajosa busca dos valores do homem-novo, conforme as considerações do Apóstolo Paulo?

Quantos sofrem e choram seus tormentos de agora, conscientes quanto às razões desses complexos dramas, sem se permitir murchar pelo desânimo, ante a visão lúcida que o Espiritismo enseja?

Hoje, quando reconhecemos, na Pátria Espiritual, os inúmeros equívocos que costumamos cometer, quando caminhantes da vilegiatura corporal, vale considerar a importância de fazer com que a gloriosa informação da Codificação penetre nossa intimidade, a fim de que respiremos esse portentoso pensamento espírita, convertendo-o em nossa real filosofia de vida, o que nos capacitará para a conquista da felicidade.

Quantos que ainda supõem que é possível ser espírita sem ajustar a própria existência aos preceitos da Codificação, e que se enganam com essa suposição?

Quantos que ainda crêem na ventura post-mortem longe dos esforços para a superação de limitações e obstáculos encontrados nas vias mundanas, e que se frustram no além?

Acho-me sob intensa emoção. Lutamos, durante um tempo longo, junto aos valorosos Benfeitores do nosso Movimento Espírita Internacional, para que este momento fosse corporificado aqui, nos campos fluídicos da alma francesa. E o Senhor da Vida no-lo consentiu. Mais do que isso, destacou eminentes Numes de vários países para formar a coordenação deste evento, a efeméride do IV Congresso Espírita Mundial, sob a inspiração do próprio Codificador.

Cabe-nos vibrar, então, ao se fecharem as cortinas deste Congresso, certos de que suas luzes não se apagarão. Os elementos energéticos que absorvemos aqui, resguardados por luminosos Prepostos de Jesus, acompanhar-nos-ão como inspiração para os trabalhos futuros e como medicação valiosa para que, daqui para a frente, logremos o fortalecimento da alma para estudar, para amar e servir, mais conscientes dos nossos deveres para conosco, para com Jesus e para com a vida, agora aclarada em seus fundamentos pelos ensinamentos do Espiritismo que, vitorioso no mundo, impulsiona-nos a ter maior clareza e penetração da razão, ao mesmo tempo que, dedicados ao bem, possamos ser felizes.

Deixo o meu abraço emocionado a todos quantos vibraram, vibram e vibrarão com essa realização bendita no solo francês, e a todos desejo paz e muita luz junto à Seara do Espiritismo.

Servidor de todos, agradecido e vibrante,

Sylvino Canuto Abreu

(Mensagem psicografada pelo médium Raul Teixeira, por ocasião da sessão de encerramento do IV Congresso Espírita Mundial, em 05.10.2004, Paris-França)


Mensagem de Gabriel Dellane

LIBERDADE COM O ESPIRITISMO

No seio do pensamento fulgente da Doutrina Espírita, todos achamos motivação para encetar os passos da nossa verdadeira libertação. Com Allan Kardec, o alcandorado amigo e ínclito Codificador do Espiritismo, torna-se menos complexa essa azáfama para a manumissão anelada. O mundo seria mais leve, e a vida humana mais fácil de ser vivida se conseguíssemos entender e usufruir a sonhada liberdade.

Liberta-se-ia a Ciência com o pensamento espírita se, ao encontrar o agente de tudo, o princípio inteligente do Universo, o Espírito, se abstivesse de tudo atribuir somente aos fenômenos materiais, como princípio e fim de tudo. Verificaria, então, quão rica e grandiosa seria a visão científica, a partir do enriquecimento trazido pela constatação e valorização consciente do horizonte espiritual.

Liberta-se-ia a Filosofia por meio do pensamento espírita, quando pousasse suas reflexões, fosse qual fosse a escola de pensamentos sustentada, na realidade do ser imortal, ao conceber que o pensamento é atributo da alma. A partir disso, se tornaria mais simples a compreensão de que tudo quanto existe no campo da matéria densa não passa das elaborações da mente, do psiquismo do ser espiritual. Entenderia o filósofo, sob a profunda luz espírita, que há um caminho menos agreste para a compreensão do ser e da existência, bem como o sentido de tudo isso, nos mundos disseminados pelos espaços.

Liberta-se-ia a Fé Religiosa ante o pensamento espírita, qualquer que fosse a sua linha interpretativa dos fenômenos da alma, ao observar seriamente e penetrar o conhecimento das leis da natureza, base em que se apóia a estrutura espírita. Destronaria o interesse subalterno de dominação de consciências, valorizaria o trabalho de amadurecimento das consciências para a visão de Deus, o que aclararia a reflexão do crente para a libertá-lo, por fim, da pieguice, do fanatismo, do fundamentalismo destrutivo.

Atido à grandeza do pensamento espírita, Allan Kardec presenteia a humanidade com a ensancha de estabelecer a libertação das criaturas, graças ao conhecimento da verdade, o que confirmaria o ensinamento do Cristo Jesus.

Se o conhecimento que estamos angariando na vida não nos é capaz de libertar da sombra generalizada, sombra do intelecto, sombra do sentimento, sombra da moral, algo está em equivoco. Ou esse conhecimento não é a expressão da verdade, ou, então, de nossa parte, não estamos assimilando devidamente seus conteúdos.

É hora de despertar, nessa fase aziaga da experiência humana.

Estamos perante o extravasar de loucuras sem dimensão; achamo-nos diante das explosões do egoísmo; encontramo-nos submetidos a um tempo de graves pelejas provocadas por incontáveis almas aturdidas, infelizes em si mesmas, que pesam sobre o psiquismo terrestre, espalhando o seu infortúnio. É tempo de cuidados intensos para a inadiável marcha.

À frente de tudo isso, porém, raia o Sol portentoso do Espiritismo no cerne da Codificação de Kardec, que nos deverá aquecer e iluminar para a vitória, para a espiritual libertação.

Agora, quando rendemos ao Mestre de Lion as justíssimas homenagens pela contagem desses dois séculos de seu último berço no mundo, sob os céus que cantavam as pautas da liberdade, da igualdade e da fraternidade, unimo-nos em oração para agradecer ao Criador por esse ensejo e por nosso júbilo, júbilo da família espírita do mundo, reunida em Paris.

Saudamos, pois, o Codificador, por haver-se tornado para nós o instrumento da liberdade que o Cristo anunciou para a humanidade inteira.

Com os mais cordiais votos de progresso e de paz, sou o servidor de todas as horas, o sempre amigo

Gabriel Delanne

(Mensagem psicografada pelo médium Raul Teixeira, por ocasião da sessão de encerramento do IV Congresso Espírita Mundial, em 05.10.2004, Paris-França)


Congresso do Bicentenário de Allan Kardec, Paris 2004
Carlos Imbassay, Freitas Nobre e Marlene Nobre



quinta-feira, 20 de março de 2008

Feliz Páscoa !

Santo Tomás, por Caravagio


O Triunfo de Tomé

“Ora, Tomé, um dos doze, chamado Dídimo, não estava com eles quando veio Jesus. Disseram-lhe, então, os outros discípulos: Vimos o Senhor. Mas ele respondeu: Se eu não vir nas suas mãos o sinal dos cravos, e ali não puser o meu dedo, e não puser a minha mão no seu lado, de modo algum acreditarei.” João. XX-24,25.


Até o advento do Espiritismo a Imortalidade era uma equação existencial insolúvel no campo da religião e, como objeto especulativo, era uma exclusividade da Filosofia. Ainda assim, falar nesse assunto era, quase sempre, tratar de uma utopia, a mera possibilidade do vir a ser, bem distante daquilo que atribuímos à realidade. Apesar de ser um tema muito presente no cotidiano da maioria das culturas históricas, como mostram os inúmeros relatos de aparições e comunicações entre vivos e mortos, foi somente no século XIX que a questão da sobrevivência após a morte deixou de ser mera hipótese. Com o Espiritismo ela passou a ser vista como realidade plausível, pois tratava-se, ao contrário da visão estreita e materialista, inclusive dos religiosos, de um fenômeno observável, de abordagem cientificamente positiva. Da evidência do fenômeno para outras conseqüências especulativas foi apenas um passo. Seguiu-se então as interessantes investigações da Hipnose, a Psicanálise e as teorias da Personalidade, as curiosas experimentações da Parapsicologia, até chegarmos nas recentes pesquisas em torno dos relatos de pacientes terminais e das Terapias de Vidas Passadas. Diríamos, historicamente falando, que todo esse processo é a consagração parcial da Imortalidade, mas não a mesma que foi vivenciada por Sócrates, no seu gesto tranqüilo e simbólico, ao ingerir cicuta, nem a que foi exemplificada por Jesus, ao manter a serenidade e perdoar os que zombavam da sua condição de crucificado.


O Espiritismo e sua fenomenologia foi, sim, um novo desafio para as equações existenciais que haviam testado os primeiros apóstolos e que agora teria de ser novamente experimentada pelos novos cristãos. A doutrina é também um desafio para a consagração da certeza sobre a dúvida, a maior das interrogações humanas, da qual o Apóstolo Tomé tornou-se símbolo universal. Como no tempo de Jesus, as maravilhas dos fenômenos não eram os fins a que se propunham os Espíritos superiores; eram apenas os meios para se chegar ao “xis” da equação existencial. Ora, isso é tão óbvio se lembrarmos que o simples fato de saber que existe vida em outra dimensão não basta para solucionarmos o enigma interior que nos atormenta a existência. No mundo espiritual não existem Espíritos ateus, que continuam materialistas, que não compreendem Deus e as leis do universo e que consideram tudo um produto do acaso? Portanto, a revelação do mundo espiritual, pelo espetáculo dos fenômenos, foi apenas o pano de fundo para percebermos uma realidade que não está no Além, mas em nós mesmos. A equação existencial do Espírito em crise, encarnado ou desencarnado, é o “Reino de Deus”, o estado de espírito que Tomé não conseguiu atingir naqueles primeiros contatos com o Cristo. A fé, como virtude e valor da moral teológica, está presente em todas as religiões, porque todas elas pregam a dualidade entre a Matéria e o Espírito, entre o físico e metafísico. Essa dualidade conflitante, na qual o indivíduo deve superar e solucionar por si próprio, é para as religiões dogmáticas o verdadeiro sentido da vida, o principal objeto de conquista e realização do ser encarnado. Mas para o Espiritismo, como havia ensinado Jesus, esse conflito é sempre uma prova, uma escolha que é composta de inúmeras outras escolhas durante as existências, tornando a fé um processo de conquista íntima gradual. O livre-arbítrio torna-se, então, mais do que uma simples faculdade racional; ele é uma Lei Natural, que impulsiona todos a fazerem escolhas e tomar as decisões que formam a bagagem individual. Mas chega um momento crucial da existência em que o livre-arbítrio atinge um limite, uma espécie de prova suprema da nossa autonomia, na qual somos derradeiramente testados a definir se avançamos para um outro estágio evolutivo ou se estacionamos, até que possamos retomar as rédeas do nosso destino. O limite é a fé, que sempre se apresenta em dois aspectos: a confiança incondicional numa força superior, nossa eterna bússola existencial, e a confiança em si mesmo, que é o fio condutor do destino. Essas duas coisas deveriam, para o nosso conforto psicológico, sempre estar em harmonia. Mas não é bem assim que a vida funciona: a incongruência entre a fé em Deus e a fé em si próprio é o dilema natural da Humanidade, uma espécie de “Complexo de Adão”, o protótipo do Homem Biológico do passado, e que só vai ser equacionado quando todos os liames com a animalidade estiverem liberados, sem nenhum vestígio dos instintos.

Mas não é só a fé em Deus que gera dúvida e ceticismo; a fé em si próprio também é uma busca, que fazemos paralelamente com a fé em Deus. O “Complexo de Adão”, durante o curso humano, só é superado, em inúmeras reencarnações, quando essas duas crenças incompletas e aparentemente antagônicas, se encontram e formam uma só experiência, a fé Integral, típica do Homem Psicológico do futuro. Essa realização não é uma experiência de exclusividade individual: ela ocorre em sociedade, onde seres semelhantes compartilham suas buscas pessoais tentando solucioná-las olhando, inconscientemente, para o mundo interior uns dos outros. É por isso que a maioria das coisas que aprendemos no terreno vivencial da existência só ocorre pelo exemplo e não pelo intelecto. O “Reino de Deus”, que é o símbolo do nosso enigma existencial, do resultado da nossa busca, só pode ser decifrado e penetrado através do contato com o outro, o semelhante, que também faz o mesmo percurso, e nunca por nós isoladamente. Esse foi o sentido dessas chaves que recebemos para desvendar esses segredos: “Sede Perfeitos, como vosso Pai Celestial!”, “Ama ao próximo como a si mesmo”, etc. Esse foi o triunfo de Tomé, exemplificado em nosso tempo na personalidade e na missão de Allan Kardec. Do “ver para crer” das mesas-girantes o Apóstolo de Lyon fez escolhas essenciais, passou por provas tentadoras, superou obstáculos exteriores que tentaram desviá-lo para outros caminhos, até chegar no “xis” da sua equação, que foi o seu e o nosso reencontro definitivo com o Cristo: não bastavam os fenômenos para renovar os antigos milagres; era necessário renovar-se para perceber o verdadeiro alcance dos mesmos.

Nova História do Espiritismo – Livro VII


Ressurreição e Reencarnação: católicos, protestantes e espíritas


O Cristianismo é uma filosofia moral que abrange os três momentos existenciais do ser humano, bem como as transformações deles decorrentes.

Na infância acontece o plantio da semente num terreno novo, de grandes possibilidades de germinação, porém sujeito a toda sorte de problemas e obstáculos contrário ao seu desenvolvimento. Mostra-se frágil e promissora.

Na adolescência a semente tornou-se uma planta que já sofreu as provas da exteriorização e busca firmar-se no ambientem hostil e perigoso. Mostra-se insegura ou agressiva, porém cheia de esperança no futuro.

Na fase adulta a semente já é uma árvore formada e consciente. Mostra-se adaptada ao ambiente e considera-se realizada dentro do seu plano existencial. Não busca mais nenhuma mudança.

Na perspectiva existencial a árvore é ponto ideal e a finalidade última da semente. A morte representa o fim.

Porém, na perspectiva consciencial, a árvore é o ponto ideal, mas não significa o ponto final. Além desse ponto abrem-se outras possibilidades de novos pontos ideais. A morte física e existencial pode ser seguida de uma segunda morte, uma crise ressurreicional na qual o ser desperta para novas e ilimitadas experiências mentais. Isso vai depender da sua maturidade e da sua vontade de transformação interior. Para ocorrer a ressurreição antes deve ocorrer um processo de amadurecimento e renovação através da reencarnação. A reencarnação é a porta de entrada das existências. A ressurreição é a porta de entrada da Vida. É por esse motivo que a transformação essencial do ser humano sempre ocorre na infância, que representa o reinício, um recomeço de outras existências que passaram e das quais se acumularam experiências mentais. A reencarnação seria a Porta Larga na qual ingressamos com muitas promessas de renovação e, todavia, nos acomodamos com as facilidades e ilusões do mundo carnal. Já a Ressurreição é a Porta Estreita diante da qual quase sempre recuamos, pois representam as provas e vicissitudes. As duas portas se apresentam constantemente em nosso caminho na forma de situações contraditórias e nas quais temos que fazer escolhas e usar corretamente o livre-arbítrio.

Na perspectiva histórica existencial o Catolicismo é a fase adulta do Cristianismo. O Protestantismo é a fase adolescente e o Espiritismo a sua infância, pois renasceu recentemente. No entanto, se analisarmos pela perspectiva histórica consciencial, essas posições se invertem e se nos revela a verdadeira face da transformação e da evolução espiritual do ser.

No catolicismo filosofia fossilizou-se na perspectiva existencial e bloqueia, pela tradição dogmática, qualquer possibilidade e interesse pela transformação. A morte vale mais que a Vida , pois é vista como um martírio que nos livra da culpa dos pecados.

No protestantismo a filosofia cristã persiste na ótica existencial e agoniza, não só pela tradição dogmática, mas também pelo medo terrificante do fracasso e da crença na eternidade do inferno. A morte é vista como uma punição que antecede o julgamento do Juízo Final. A transformação é superficial e enganosa, alimentada pela crença de que o arrependimento é suficiente para nos livrarmos dos pecados e da culpa. Nas duas situações anteriores, a mente humana faz o ser mentir para si mesmo, como fuga e defesa, negando a relação de causa e efeito entre o erro e o sofrimento. A religiosidade foi pervertida e tornou-se religião.

No Espiritismo a filosofia cristã reacende a religiosidade, porém rejeita a religião; aceita a ótica consciencial, reconhece a utilidade existencial, mas não se escraviza a ela e liberta-se dos dogmas. Ao fazer a necessária relação de causa e efeito entre o erro e o sofrimento, o ser passa a dar mais valor à necessidade de transformação interior. Isso não significa que ele consiga realizá-la de imediato, pois é apenas um entendimento racional e intelectual. A mudança efetiva só ocorre quando se processa uma compreensão integral da sua condição ( razão, sentimento e ação). Ao aceitar a realidade consciencial, ou seja, que além do corpo e da morte existem outras experiências, se estabelece uma harmonia entre a visão existencial e a consciencial, que antes era conflituosa, dialética. Diminuem então as fugas, os medos irracionais e o caminho para as escolhas ficam mais abertos às decisões sensatas. As portas largas vão sendo trocadas pelas portas estreitas, de experiências mais valiosas e qualitativas. Mesmo estando na infância existencial o Espiritismo goza da maturidade consciencial, pois, através da compreensão da reencarnação (que não é uma crença, mas uma lei natural) penetra na essência espiritual do ser, que é a sua verdadeira ressurreição.

Portal do Espírito

domingo, 16 de março de 2008

Jerusalém, Jerusalém...




Funerais das vítimas do atentado ao seminário de jovens em Israel. Imagens: New York Times

A chamada Semana Santa, que marca os trágicos acontecimentos do Gólgota e os episódios das aparições de Jesus aos apóstolos, continua a ter forte repercussão na mentalidade religiosa ocidental e também nos admiradores da filosofia e do modo de vida cristão. A velha cidade palestina que serviu de cenário para os martírios do Mestre, na época sob cruel regime romano, ainda é alvo de equívocos e incertezas sobre o seu real significado histórico. Continuam ali os seculares conflitos estimulados pelo ódio e pela violenta disputa do espaço geográfico entre culturas diferentes, embora muito semelhantes em suas mais remotas origens semitas. Divergem eles sobre a natureza ideológica daqueles territórios, ignorando as narrativas bíblicas que sempre apontaram Canaã e Jerusalém como metáforas do Reino de Deus. Ignoram também as leis divinas que identificam aqueles lugares sagrados como símbolos da fraternidade, do desapego aos valores materiais, do tempo futuro, da Terra como planeta regenerado e não mais como doloroso campo de provas e expiações.

sábado, 15 de março de 2008

Judas Iscariotes

Ecco hommo, por Caravagio

Judas Iscariotes talvez seja a figura mais polêmica de todos os tempos no universo cultural judaico-cristão. Peça-chave na prisão e julgamento de Jesus, o imaturo discípulo da Boa Nova tornou-se símbolo da incompreensão da mensagem cristã e da traição dos princípios espirituais do seu mestre. Mais ainda, na mitologia popular construída pelo catolicismo medieval, Judas assumiu ares de figura maldita, de personalidade fraca e que se vendeu ao diabo por dinheiro e promessas de influência no mundo político da época. Muitos ainda especulam se a sua existência estava marcada pela fatalidade e predestinação ao exercer o triste papel. O próprio Allan Kardec, ao dar instruções sobre a elaboração da história espírita usa Judas como metáfora para se referir aos traidores dos princípios doutrinários. Na literatura mediúnica Judas aparece de forma diferente. É um discípulo fracassado, cuja queda não compromete sua salvação. Pelo contrário, o erro torna-se arrependimento e a busca de reparação da falta se dá pelas vias da reencarnação. Sua volta ao cenário da carne na pele de Joana D’ Arc, a guerreira francesa que enfrenta as tropas inglesas, acontece em lances de provas nas quais ela se guia por inspiração e transes mediúnicos. Sua expiação ocorre quando, depois de vitoriosa, percebe que, mais uma vez, serviu de joguete dos interesses políticos. É sempre interessante lembrar que nos textos clássicos sobre a heroína, o seu drama de consciência é muito mais significativo do que o seu próprio envolvimento com a trama histórica. Na última versão para o cimema, Joana revela um grave sentimento de culpa por ter traído o Mestre em algum lugar de um passado que ela não se lembra e que sempre coloca, como compensação, na esfera do pecado e da tentação. O mesmo aconteceu com Teresa D’Ávila, que muitos apontam ter sido a volta de Maria Madalena.

Uma entrevista com Judas

Nas margens caladas do Jordão, não longe talvez do lugar sagrado, onde o Precursor batizou Jesus Cristo, divisei um homem sentado sobre uma pedra. De sua expressão fisionômica irradiava-se uma simpatia cativante.

- Sabe quem é este? - murmurou alguém aos meus ouvidos. - Este é Judas.

- Judas?!...

- Sim. Os espíritos apreciam, às vezes, não obstante o progresso que já alcançaram, volver atrás, visitando os sítios onde se engrandeceram ou prevaricaram, sentindo-se momentaneamente transportados aos tempos idos. Então mergulham o pensamento no passado, regressando ao presente, dispostos ao heroísmo necessário do futuro. Judas costuma vir a Terra, nos dias em que se comemora a Paixão de Nosso Senhor, meditando nos seus atos de antanho...

Aquela figura de homem magnetizava-me. Eu não estou ainda livre da curiosidade do repórter, mas entre as minhas maldades de pecador e a perfeição de Judas existia um abismo. O meu atrevimento, porém, e a santa humildade do seu coração ligaram-se para que eu o atravessasse, procurando ouvi-lo.

- O senhor é, de fato, o ex-filho de Iscariotes? - perguntei.

- Sim, sou Judas - respondeu aquele homem triste, enxugando uma lágrima nas dobras de sua longa túnica.
Como o Jeremias, das Lamentações, contemplo às vezes esta Jerusalém arruinada, meditando no juízo dos homens transitórios...

- E uma verdade tudo quanto reza o Novo Testamento com respeito à sua personalidade na tragédia da condenação de Jesus?

- Em parte... Os escribas que redigiram os evangelhos não atenderam às circunstâncias e as tricas políticas que acima dos meus atos predominaram na nefanda crucificação. Pôncio Pilotos e o tetrarca da Galiléia, além dos seus interesses individuais na questão, tinham ainda a seu cargo salvaguardar os interesses do Estado romano, empenhado em satisfazer as aspirações religiosas dos anciãos judeus. Sempre a mesma história. O Sanedrim desejava o reino do céu pelejando por Jeová, a ferro e fogo; Roma queria o reino da Terra. Jesus estava entre essas forças antagônicas com a sua pureza imaculada. Ora, eu era um dos apaixonados pelas idéias socialistas do Mestre, porém o meu excessivo zelo pela doutrina me fez sacrificar o seu fundador. Acima dos corações, eu via a política, única arma com a qual poderia triunfar e Jesus não obteria nenhuma vitória. Com as suas teorias nunca poderia conquistar as rédeas do poder, já que, no seu manto e pobre, se sentia possuído de um santo horror à propriedade. Planejei então uma revolta surda como se projeta hoje em dia na Terra a queda de um chefe de Estado. O Mestre passaria a um plano secundário e eu arranjaria colaboradores para uma obra vasta e enérgica como a que fez mais tarde Constantino Primeiro, o Grande, depois de vencer Maxêncio às portas de Roma, o que, aliás, apenas serviu para desvirtuar o Cristianismo. Entregando, pois, o Mestre, a Caifás, não julguei que as coisas atingissem um fim tão lamentável e, ralado de remorsos, presumi que o suicídio era a única maneira de me redimir aos seus olhos.

- E chegou a salvar-se pelo arrependimento?

- Não. Não consegui. O remorso é uma força preliminar para os trabalhos reparadores. Depois da minha morte trágica, submergi-me em séculos de sofrimento expiatório da minha falta. Sofri horrores nas perseguições infligidas em Roma aos adeptos da doutrina de Jesus, e as minhas provas culminaram em uma fogueira inquisitorial, onde, imitando o Mestre, fui traído, vendido e usurpado. Vítima da felonia e da traição, deixei na Terra os derradeiros resquícios do meu crime, na Europa do século XV Desde esse dia, em que me entreguei por amor do Cristo a todos os tormentos e infâmias que me aviltavam, com resignação e piedade pelos meus verdugos, fechei o ciclo das minhas dolorosas reencarnações na Terra, sentindo na fronte o ósculo de perdão da minha própria consciência...

- E está hoje meditando nos dias que se foram... - pensei com tristeza.

- Sim... estou recapitulando os fatos como se passaram. E agora, irmanado com Ele, que se acha no seu luminoso Reino das Alturas que ainda não é deste mundo, sinto nestas estradas o sinal de seus divinos passos. Vejo-O ainda na cruz entregando a Deus o seu destino... Sinto a clamorosa injustiça dos companheiros que O abandonaram inteiramente e me vem uma recordação carinhosa das poucas mulheres que O ampararam no doloroso transe... Em todas as homenagens a Ele prestadas, eu sou sempre a figura repugnante do traidor... Olho complacentemente os que me acusam sem refletir se podem atirar a primeira pedra... Sobre o meu nome pesa a maldição milenária, como sobre estes sítios cheios de miséria e de infortúnio. Pessoalmente, porém, estou saciado de justiça, porque já fui absolvido pela minha consciência no tribunal dos suplícios redentores.

Quanto ao Divino Mestre - continuou Judas com os seus prantos - infinita é a sua misericórdia e não só para comigo, porque, se recebi trinta moedas, vendendo-O aos seus algozes, há muitos séculos Ele está sendo criminosamente vendido no mundo a grosso e a retalho, por todos os preços, em todos os padrões do ouro amoedado...

- E verdade - concluí - e os novos negociadores do Cristo não se enforcam depois de vendê-LO.

Judas afastou-se tomando a direção do Santo Sepulcro e eu, confundido nas sombras invisíveis para o mundo, vi que no céu brilhavam algumas estrelas sobre as nuvens pardacentas e tristes, enquanto o Jordão rolava na sua quietude como um lençol de águas mortas, procurando um mar morto.

Humberto de Campos, por Chico Xavier - Crônicas . FEB Editora

quarta-feira, 5 de março de 2008

Ivo Pitanguy e a tragédia no circo


Espiritualista, aficionado por antiguidade romana , o Dr. Ivo Pitanguy foi um dos personagens-chave da famosa tragédia do Grand Circus Norte Americano. Suas feições mostram claramente os antigos traços romanos e sua atuação como jovem médico voluntário no caso revelaram sua ligação espiritual com os acontecimentos de 1961 em Niterói. O crime inconsequente que tirou a vida de mais 500 pessoas, a maioria crianças, causou uma grande comoção na época. Posteriormente, através do médium Chico Xavier, o Espírito Humberto de Campos (Irmão X) levantou o véu do tempo e revelou as origens remotas da tragédia. Nos textos elaborados para o programa Linha Direta , da TV Globo, encontramos essas informações o sobre o envolvimento do famoso cirurgião plástico com esse fato dramático:


“Já era um cirurgião renomado, professor da PUC, chefe de um CTQ da Santa Casa da Misericórdia e dono da clínica na Rua Dona Mariana, em Botafogo, quando ouviu pelo rádio a notícia do incêndio. Na época – em plena Guerra Fria – preocupado com os efeitos da bomba atômica, Pitanguy estudava muito o assunto “queimados” e a relação do médico com a comunidade afetada. Ao tomar conhecimento da dimensão da tragédia, Pitanguy reuniu alguns profissionais e juntou-se aos outros médicos, especialmente os de Niterói, que tinham se apresentado como voluntários no socorro às vítimas. Chegou na cidade organizando um Centro de Tratamento de Queimados no hospital Antonio Pedro e passou a coordenar o socorro às vítimas. Na época, Pitanguy foi o primeiro cirurgião a utilizar pele liofilizada (congelada) no tratamento de queimados. Para tanto, recebeu 35 mil centímetros de pele, de um hospital dos Estados Unidos, que tinha o material, mas nunca havia utilizado. Pitanguy ficou meses cuidando dos doentes, em Niterói, e outros meses tratando da recuperação das vítimas na Santa Casa, no Rio. Durante um congresso da OTAN, em Bruxelas, Pitanguy apresentou um relatório, indicando a tragédia do circo de Niterói como a maior do mundo em recinto fechado”.

O incêndio do Gran Circus Norte-Americano




Na tarde de 17 de dezembro de 1961, um domingo de muito sol, Niterói – então capital do estado do Rio de Janeiro – se arrumou para ir ao circo. Era a primeira matinê da temporada do grandioso Gran Circus Norte Americano, que prometia ser de apenas 10 dias. Naquela tarde quente, que beirava os 40 graus, Adilson Marcelino Alves, o “Dequinha”, convidou dois amigos para tocar fogo no circo. O crime faria parte de um plano de vingança idealizado um dia antes por Dequinha, que fora contratado como mão-de-obra temporária para a montagem do circo, mas desentendera-se com um funcionário e acabara sendo expulso do local debaixo de agressões. O convite para cometer o ato criminoso foi feito a José do Santos, o “Pardal”, ladrão que cumpria 10 anos de cadeia e que estava nas ruas sob licença especial do diretor do presídio; e Walter Rosa dos Santos, o “Bigode”, um morador de rua e alcóolatra. Além dos três, estavam a companheira de Bigode, Regina Maria da Conceição, e a companheira de Pardal, Dirce Siqueira de Assis. No meio do caminho, Bigode comprou um litro de gasolina num posto, por 20 cruzeiros. O espetáculo já tinha começado. Bigode e Dequinha conseguiram entrar sem pagar, removendo uma folha de zinco e passando por baixo da lona. Antes, porém, Bigode escondeu a garrafa com gasolina no pé de uma árvore. Pardal ficou de fora com as mulheres, bebendo. Dequinha e Bigode ocuparam os últimos degraus da arquibancada. Assistiram a vários números e chegaram a aplaudir os artistas. Quando faltavam poucos minutos para o fim do espetáculo, durante a apresentação dos trapezistas, Dequinha teria notado que fora visto por Maciel Felizardo e dado a ordem a Bigode: "tá na hora". Bigode ainda teria advertido Dequinha de que o circo estava muito cheio e alguém poderia morrer. Dequinha retrucou: "Que nada, rapaz. Eu tô invocado com o homem do circo. Ele me deve". Os dois saíram por onde entraram e chamaram Pardal e as mulheres para ver o circo pegar fogo. Dequinha ordenou: "joga a gasolina". Bigode derramou o combustível sobre uma das laterais da lona e desafiou Dequinha: "já botei a gasolina, se quiser tacar fogo, taca! A cabeça é sua". Dequinha aproximou-se da lona, riscou o fósforo e o jogou. A platéia presente era de cerca de três mil pessoas, 70 por cento de crianças. A trapezista Nena Stevanovich não chega a concluir o tríplice mortal e cai sobre a rede de proteção. Ela é a primeira a gritar fogo! A multidão também percebe o perigo e tenta fugir desesperadamente. Todos tentam sair pelo corredor onde entraram. O rugir das feras, que estavam presas em jaulas nos fundos, era tão assustador quanto o fogo. E segundo testemunhas, chovia labaredas sobre o público: o derretimento da lona parafinada provocou os pingos incandescentes. Era uma visão apocalíptica. Na correria, muitos tropeçam e caem, obstruindo a passagem dos que vinham atrás, que acabam caindo por cima. Saldo final: cerca de 500 mortos e outras centenas de feridos. O incêndio do circo em Niterói é considerada a maior tragédia em recinto fechado que se tem notícia. Dequinha, Pardal, Bigode e as mulheres foram presos na mesma semana e confessaram o crime. Os homens foram condenados a 16 anos de prisão e as mulheres absolvidas. Passados mais de 40 anos, a tragédia permanece como uma ferida aberta na cidade de Niterói. (Linha Direta)

Chico Xavier, o Irmão X e as causas da trajédia


No ano 177 da nossa era, na cidade de Lion, nas Gálias Francesas o "Concilium" estava abarrotado de gente. Não se tratava de nenhuma das assembléias tradicionais, junto ao altar do imperador, e sim de compacto ajuntamento. Marco Aurélio reinava, piedoso, e, embora não houvesse ordenado nenhuma perseguição aos cristãos, permitia que se aplicassem, com o máximo rigor, todas as leis existentes contra eles. A matança, por isso, perdurava terrível. Ninguém examinava necessidades ou condições. Mulheres e crianças, velhos e doentes, tanto quanto homens válidos e personalidades prestigiosas, que se declarassem fiéis ao Nazareno, eram detidos, torturados e eliminados sumariamente. Os cristãos de Lion eram sacrificados no lar ou barbaramente espancados no campo. Os desfavorecidos da fortuna, inclusive grande massa de escravos, eram entregues às feras em espetáculos públicos. Quando as feras pareciam entorpecidas, após massacrarem milhares de vítimas, nas mandíbulas sanguissedentas, inventavam-se tormentos novos. Mais de vinte mil pessoas já haviam sido mortas.

Naquele ano de 177 a que nos referimos, a noite caía célere e a multidão se acotovelava para decidir quanto ao espetáculo que ofereceriam a Lúcio Galo, famoso cabo de guerra que visitaria Lion no dia seguinte. Imaginaram-se, para logo, comemorações a caráter. Álcio Plancus dirigia a reunião programando os festejos. Tocado pelo vinho abundante, Álcio convocava a assembléia para que o ajudasse a pensar num espetáculo diferente, à altura do visitante.

Um gritava: a equipe de dançarinas nunca esteve melhor..

Outro lembrava: providenciaremos uma briga de touros selvagens.

Excelente lembrança! Falou Álcio em voz mais alta mas, em consideração ao visitante, é preciso acrescentar alguma novidade que Roma não conheça...

Cristãos às feras já não constitui novidade. É preciso algo novo.

E o próprio Álcio apresentou um plano distinto:

- Poderíamos reunir, nesta noite, aproximadamente 1000 mulheres e crianças cristãs, guardando-as no cárcere...
E, amanhã, coroando as homenagens, ofereceremos um espetáculo inédito. Nós as colocaremos na arena, molhada com resina inflamável e devidamente cercada de farpas embebidas em óleo, deixando apenas passagem para os mais fortes.

Depois de mostradas festivamente ao público, incendiaremos toda a área e soltaremos sobre elas os velhos cavalos que não sirvam mais para os nossos jogos. Realmente, as chamas e as patas dos animais formarão um espetáculo inédito.

- Muito bem! Muito bem! Rugiu a multidão de ponta a ponta do átrio.

Durante a noite inteira, mais de mil pessoas, ávidas de crueldade, vasculharam residências humildes e, no dia subseqüente, ao sol vivo da tarde, largas filas de mulheres e criancinhas, em gritos e lágrimas, no fim de soberbo espetáculo, encontraram a morte, queimadas nas chamas, ou despedaçadas pelas patas dos cavalos em correria...

Quase 18 séculos passaram sobre o tenebroso acontecimento...

Entretanto, a justiça da lei, através da reencarnação, reuniu todos os responsáveis, que, em diversas posições de idade física, se aproximaram de novo para dolorosa expiação, no dia 17 de dezembro de 1961, na cidade brasileira de Niterói-RJ, em comovedora tragédia num circo.


Do livro CARTAS E CRÔNICAS – Feb Editora

O Profeta Gentileza


O incêndio no circo foi um chamamento divino para o empresário do setor de transportes José Datrino, morador do subúrbio de Guadalupe, no Rio. Segundo o professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) Leonardo Guelman, biógrafo do profeta, no dia do incêndio, Datrino guiava um de seus três caminhões, por Nova Iguaçu, quando três vozes astrais lhe disseram que a partir de então ele teria que ser uma espécie de São José e representar Jesus Cristo na Terra. E mais: sua missão teria que começar no local do circo. Ninguém sabe dizer se Datrino ouvira a notícia da tragédia pelo rádio ou se realmente teve a visão. A verdade é que no dia seguinte, ele estacionou um de seus caminhões junto às barcas e distribuiu 200 litros de vinho em copinhos de plástico. "Quem quiser tomar vinho, não precisa pagar nada, é só pedir por gentileza, é só dizer agradecido". Como a cidade ainda respirava a fumaça do incêndio da véspera, a Polícia Militar acabou prendendo Datrino, alegando que ele estava perturbando a ordem. Quando os policiais disseram que o levariam para o Batalhão, que ficava perto do local do circo, Datrino respondeu com sua peculiar simpatia: "Ótimo, é ali mesmo que vou ter que começar minha missão". José Datrino a partir de então passou a chamar-se José Agradecido ou Profeta Gentileza. Além do nome, abandonou também a antiga vida de empresário, inclusive a família, mulher, cinco filhos e 18 netos. Gentileza morou quatro anos no local do incêndio. Fez um jardim, abriu poço e deu um aspecto diferente ao lugar. É por causa disso (morar no local do incêndio) que surgiu a lenda de que o Gentileza perdera toda a família na tragédia. Pura lenda. Depois saiu dali e percorreu o Brasil, pregando a gentileza. O cabelo e a barba se tornaram longos, dando-lhe uma aparência divina. Uma bata branca, com apliques cheios de mensagens, passou a ser seu traje. Andava segurando estandartes com dizeres em vermelho. Era visto por toda a cidade do Rio e acabou tornando-se uma de suas maiores figuras folclóricas. Entrava nos trens e ônibus para fazer suas pregações. Viajava nas barcas. A partir de 1980, pintou 56 pilastras do viaduto do Caju, perto da rodoviária, com inscrições em verde-e-amarelo, propondo sua crítica do mundo e sua alternativa ao mal-estar da nossa civilização. A obra, chamada depois de “livro urbano”. Gentileza morreu em maio de 1996, na cidade de Mirandópolis, São Paulo, vítima de problemas circulatórios.

Fonte: Linha Direta – Rede Globo - Caso: O INCÊNDIO DO GRAN CIRCUS NORTE AMERICANO
29/06/2006