Na semana passada desencarnou o amigo Raimundo, de 73 anos de idade (23 a mais do que eu), mulato baiano, alto, magro e de cabelos brancos. Muito falante e cheio de ideias, Raimundo me considerava seu amigo e eu, desconfiado das suas conversas de vendedor (aposentou-se como representante comercial de grandes multinacionais), ficava ouvindo atento as suas longas histórias pensando no por quê ele queria ser meu amigo, já que, segundo o meu preconceito, pessoas experientes não fazem questão de se aproximar dos outros para fazer amizade. Mas ele sempre dava um jeito de se aproximar e principalmente me segurar numa conversa, dizendo “Senta aí, relaxa, me conta as novidades...” Mas quem sempre contava as novidades era ele, sempre. Gostava muito de demonstrar conhecimento e lamentava não ter podido estudar e até confessou que a sua cabeça nunca foi boa para essas coisas. Mal sabia que eu também nunca fui muito amigo dos estudos. Me chamava de "Professor" e nunca pelo meu nome. Nunca falamos sobre espiritismo ou coisas do outro mundo. Ele gostava mesmo era de falar das coisas desse mundo, das “coisas boas”, pescarias, caçadas, mulheres, um pouco de futebol. E também da vida outros. Isso me preocupava porque eram coisas curiosas e atraentes, difíceis de resistir, e também porque ficava intrigado me perguntando se também não falava da minha vida para os outros. Daí a minha desconfiança. As vezes fugia dele, alegando pressa de ir para o trabalho, e apenas saudava de longe: “Fala Raimundão!” De resto era tudo muito legal e gostoso aqueles papos quase unilaterais sobre as mil coisas que se passavam pela cabeça dele. Quando a conversa ia afinando, comentava: “Ficar velho não é fácil, dá um trabalhão manter as coisas em ordem!” Gostava de política e vivia se metendo nos assuntos do condomínio. Queria que eu fosse o próximo síndico. Minha desconfiança aumentou e pensei: “O Raimundão tá querendo me ferrar!”. Era corintiano. Passou umas contrariedades na última eleição, da qual fiquei bem longe (alegando que já havia dado minha contribuição no Conselho), mas não creio que esse tenha sido o motivo do aneurisma que provocou sua passagem. Eu já estava aguardando esse desencarne porque percebia que ele andava muito inquieto e ansioso. Um dia antes me cobrou uma conversa mais longa. Atendi o pedido e tivemos a oportunidade de colocar algumas coisas nos devidos lugares. Nessa conversa, algum tempo depois de iniciada, tivemos a presença de outras pessoas que foram se aproximando de nós, sentindo o clima amistoso e alegre, juntando-se para também se despedir do amigo que ia partir. E se foi o Raimundo, em meio aquela agitação natural dos gritos dos vizinhos, do barulho do resgate, dos parentes chegando desorientados, enfim, a hora dos mortos enterrarem seus mortos. Uma semana depois me perguntaram se tinha ido ao velório, enterro e missa. Fiquei constrangido pela minha indelicadeza. Mas lembrei de uns detalhes curiosos: minha esposa me disse que na noite logo após o desencarne, perambulei pela casa, fora do corpo. Foi uma noite perturbadora, de agonia. Sete dias depois, a noite foi bem diferente. Conversei com o Raimundo. Ele queria falar , mas não conseguia. Dessa vez foi a minha vez de falar... Ele estava bem, mas ainda meio perdido, como eu naquele lugar de triagem e espera. Eu olhava no relógio e também queria dizer ao Raimundão que esse ano vou fazer 50 anos. Ele sorria e, sem dizer uma palavra, informava que me achava bobo, mas que gostava de mim. Acordei diferente e logo pensei: “Não fui no velório, no enterro nem na missa, mas fui num lugar muito melhor. E o Raimundão está vivinho da Silva!”
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