terça-feira, 23 de setembro de 2008

Paradigmas

Nicole Kidman em "Os Outros": o Espírito e o médium num choque de realidade ou a horrível dor de cair em si.



O amigo Marcos, jovem pensador e pesquisador, nos enviou essas dúvidas sobre a atualidade da Doutrina Espírita. Achamos que seria uma boa oportunidade para testarmos as nossas convicções e fizemos o exercício logo em seguida. Que tal fazer o mesmo?


“Tenho 26 anos, sou estudante de Filosofia e de família espírita, abandonei a doutrina por um tempo e agora retorno aos estudos da obra da codificação. Contudo deparei-me com um problema a que, ao meu ver, é de estrema relevância: o paradigma de ciência de Kardec está enraizado no positivismo, que não é mais coerente com paradigma de ciência de hoje, após as reflexões de Popper, Kuhn e outros. Nesse sentindo, é possível falarmos em Leis desveladas por trás das coisas, sem cair no erro do mito científico do positivismo? Se a doutrina tem por base a Ciência (do grego ἐπιστήμη [episteme], ciência, conhecimento; λόγος logos, discurso), a Filosofia, que entre um dos campos está A teoria do conhecimento e a Espistemologia, que investiga justamente os modelos científicos e sua validade interna e externa, e a Religião, enquanto reencontro com sagrado?

Dessa forma, o sistema proposto pelos espíritos e codificado por Kardec, parte de axiomas incontestáveis tais como reencarnação, lei de causa efeito, etc. Internamente o campo doutrinário é coerente, enquanto sistema fechado, contudo do ponto de vista dos paradigmas colocados pela Filosofia da Ciência, estaríamos beirando o dogma, já que esses axiomas são dados como verdades incontestáveis. Vejo que a leitura do livro dos espíritos portanto, deve levar em conta o contexto científico e apresentar os limites do racionalismo positivista, nesse sentido, da minha perspectiva, a leitura deve ser interpretativa, sendo assim, acho necessário a fundamentação de uma Teologia Espírita, e revalorização da fé no âmbito da doutrina. Vejo muitos Dr. Espíritas elucidarem os fenômenos deste e do outro mundo com uma certeza inabalável de seus raciocínios e no poder da razão, em sinlogismos “tautológicos”, sem no entanto questionarem aquilo mesmo que os fundamenta, e o método que empregam. Mas a meu ver, essa certeza inabalável é sempre a maior inimiga da reflexão filosófica, da Verdade e da Religião”.

................................

Caro Marcos, grato pelo contato e pela oportunidade de conversarmos sobre tema tão atraente!

Kardec tinha plena consciência de que a ciência espírita não deveria se apegar exclusivamente aos dogmas ou paradigmas daquele contexto histórico. Recomendou cansativamente que , sendo a ciência um mecanismo dinâmico de conhecimento, é certamente também evolutivo e sofre as transformações impostas pelo tempo, pelas novas descobertas e enfoques. O Espiritismo deveria, segundo ele, acompanhar essas transformações, mesmo que tivesse de abrir mão de suas verdades primordiais. E assim tem sido. A física mecanicista de Newton cedeu lugar o paradigma quântico e praticamente confirmou todas as premissas das hipóteses espíritas sobre o universo, a energia, a matéria e principalmente a sobrevivência do ser extracorpóreo. A reencarnação sempre foi tratada por Kardec como premissa filosófica, hipótese científica, lei da natureza e não como crença dogmática. A pluralidade de mundos seguiu a mesma trajetória: aguardamos os rumos da ciência, como fez Kardec, colocando o assunto sempre como hipótese, mesmo quando se deparava com comunicações altamente convincentes. O intercâmbio mediúnico em diferentes dimensões nunca foi exclusividade do Espiritismo, sendo prática usual em todas as culturas. Mesmo alimentando a linguagem mítica e a abordagem mística, tais intercâmbios sempre adquiriram valor de verdade mais pela evidência de dados imprevistos ou incomuns, do que pela própria forma pela qual se manifestavam. Isso continua acontecendo, por exemplo, nos tribunais: quando aparece uma prova essa se destaca por ser algo que não estava previsto no processo e salta como evidência irrefutável porque não haveria outra forma de acesso a tais informações senão pelo próprio testemunho do Espírito. Como recusar uma informação até então desconhecida e que pode ser confirmada materialmente dessa forma? Isso não é crença! São fatos e contra fatos realmente não há argumentos. Você tem razão: o fenômeno espírita ainda é um desafio para a ciência positiva, que ainda não aceita os novos paradigmas da ciência transcendental. Nunca aceitou. Alguns cientistas aceitaram porque aceitavam os limites desses paradigmas e indicaram caminhos que continuam sendo rejeitados pelos seus parceiros dogmáticos e presunçosos. Einstein, Planck, Prigogine, Khun, Murayama, e tantos outros já desmontaram esse modelo positivo de certezas para mostrar que o universo é dinâmico e que a realidade não se baseia em evidências estáticas.

Sobre a teologia espírita, que é temática filosófica, não houve nenhuma revolução de conceitos, mas apenas a reafirmação de idéias há muito defendidas pelos pensadores antigos, incompreendidos em suas reflexões. A diferença é que eles não tinham uma metodologia experimental, como fez Kardec ao utilizar a mediunidade como ferramenta de pesquisa e verificação de hipóteses. O Livro dos Espíritos não foi produto da sua imaginação de escritor ou teólogo, mas de perguntas e respostas fartamente testadas em diversas fontes e oportunidades. Não são as respostas do Espírito X ou Y que possuem valor de verdade, mas os conteúdos e os argumentos. Essa metodologia está exposta claramente no Livro dos Médiuns e foi amplamente aceita, por exemplo, por Charles Richet, que embora não aceitando a revelação espírita (mesmo vendo, dialogando e apalpando espíritos materializados ) por razões pessoais e ideológicas, reconheceu que o método era científico e não permitia fraudes ou especulações "interpretativas". Concordamos com você sobre o perigo das verdades incontestáveis. Temos sempre que submetê-las ao crivo da razão. Kardec sempre fez isso e nunca colocou nenhuma tese espírita no pedestal do "incontestável". Dizia que a fé verdadeira era aquela que pudesse enfrentar a razão face a face. Quem teme esse axioma não é espírita autêntico, pois teme a verdade. Até agora ninguém nos convenceu que o fenômeno espírita não é fenômeno da natureza e que, sendo fenômeno, pode ser explicado na sua essência e realidade. Podemos até não aceitar, por questões emocionais ou ideológicas. Mas não podemos negar por questões racionais. Até que se "prove" o contrário!

Nenhum comentário: