Sérgio Augusto
Os filósofos costumam durar mais que a gente ou é apenas impressão?
Mais que a maioria dos tiranos eles duram, e isso é um consolo. Sêneca, por exemplo, morreu com 71 anos, idade avançadíssima para a época (século 1 d.C.), ao passo que seu algoz, Nero, não foi além dos 32. Tales de Mileto, o primeiro filósofo ocidental, e Sócrates também chegaram aos 70. Demócrito atingiu o recorde de 109 anos, nove a mais que o pitagórico e místico ambulante Apolônio de Tiana. Pitágoras, Sólon e Platão viveram até os 80, feito mais notável antes da Era Cristã do que os 92 alcançados pelo hermeneuta francês Paul Ricoeur em 2005. Claude Lévi-Strauss, não custa lembrar, continua vivo - e, desde novembro, centenário.
Se não foi apenas uma figura lendária, como muitos acreditam, o cretense Epimenides logrou atravessar quase dois séculos de vida, um quarto dos quais teria passado dormindo numa caverna, como um Rip van Winkle do século 6 a.C. Desconsiderem-no, portanto. Mas mantenham Calígula (que não passou dos 28) e os demais césares. Napoleão? Morreu cinquentão.
Vez por outra, alguém se interroga sobre a proverbial longevidade dos filósofos; geralmente na Inglaterra, onde também é grande o interesse em torno da maneira trágica como a maioria dos filósofos costuma partir desta para melhor. "Todos os filósofos eminentes dos últimos dois séculos ou foram assassinados ou disso escaparam por pouco", notou Thomas de Quincey, em meados do século 19.
Inspirado por essa observação, o emérito professor de filosofia D.H. Mellor, da Universidade de Cambridge, produziu uma lista de não sei quantos filósofos com sua respectiva "causa mortis"; não a verdadeira, visando dar sustentação à tese de De Quincey, mas a que o seu senso de humor, inspirado nas idéias de cada um deles, logo, só para os iniciados, ditou. Segundo Mellor, Leibniz teria (ou deveria ter) morrido de "monadanucleose"; Marx, de "causas materiais"; Henri Bergson, de "élan mortal"; Maquiavel, vitimado por uma "intriga"; e Lutero, por uma "dieta de vermes" (no original, Diet of Worms, referência à Dieta de Worms, a cimeira de 1521 na cidade alemã de Worms, em que Lutero se recusou a baixar a crista para o Vaticano).
Recentemente, outro professor de filosofia britânico, Simon Critchley, há tempos dando aula na New School for Social Research, em Nova York, investigou a suspeita firmada por De Quincey e descobriu que os grandes filósofos, vida longa à parte, não só costumam sofrer muito antes de morrer como, desde a Antiguidade, preocupam-se à beça com a questão da "boa morte".
A maioria dos 190 exemplos por ele arrolados, sob a forma de verbetes, em The Book of Dead Philosophers (O Livro dos Filósofos Mortos), editado pela Grantas na Inglaterra e pela Vintage nos Estados Unidos, comprova essa tendência. A lista começa com os pré-socráticos e vem até o século 20. Ou seja, de Tales de Mileto (que morreu de desidratação enquanto assistia a uma prova de atletismo) a Michel Foucault (que morreu de aids) e Guy Debord (que se matou).
Sócrates foi condenado a beber cicuta. Aristóteles ingeriu uma ranunculácea venenosa. Heráclito sufocou-se em estrume de vaca. Empédocles jogou-se no vulcão Vesúvio. Diógenes ou prendeu o fôlego além da conta ou intoxicou-se com um polvo cru. Diderot engasgou-se com um damasco. Uma indigestão de patê trufado levou ao túmulo o reputado médico-filósofo do século 18 Julien Offray de la Mettrie. O poeta latino Lucrécio só morreu relativamente jovem (43 anos) porque se suicidou, no século 1 a.C. Maquiavel terminou seus dias na miséria. Karl Max tinha o corpo coberto de carbúnculos quando a morte o pegou dormindo numa poltrona. Nietzsche demorou uns 10 anos sendo consumido pela sífilis e a loucura. Roland Barthes foi atropelado por uma ambulância. Pouco antes de enfartar, Hannah Arendt caiu num bueiro ao sair de um táxi em frente ao prédio onde morava, em Manhattan. Francis Bacon meteu-se a refrigerar um frango com um punhado de neve de uma rua londrina, pegou friagem e...
De todos esses terríveis epílogos, o do filósofo e dramaturgo Sêneca foi o que mais me impressionou. Conselheiro de Nero e por este condenado ao suicídio, em 65 d.C., lembramo-nos dele na célebre pintura de Rubens (circa 1601), que nem de longe retrata as agruras por que passou antes de tomar aquele fatal banho de tacho. O estoico romano primeiro cortou os pulsos. Perdeu rios de sangue, mas continuou vivo. Aí pediu veneno (acônito, o mesmo que teria matado Aristóteles), e nada. Metido por seus serviçais num tacho de água quente, ali, finalmente, desencarnou, provavelmente sufocado pelo intenso vapor do banho.
Albert Camus só ganhou espaço no livro de Critchley por ter qualificado a morte em acidente de carro como a "mais absurda" de todas. Se Camus teve uma morte absurda, as de Periander, Pitágoras e Tycho Brahe foram patéticas, beirando o ridículo.
Periander de Corinto, um dos sete sábios da Grécia, ao lado de Tales, Sólon e Chilon, tanto tramou para que seu túmulo jamais fosse encontrado, que acabou assassinado por um dos participantes da trama. Pitágoras não teria sido degolado onde hoje fica a Calábria, na Itália, se tivesse escapulido por uma plantação de feijão. (O autor do mais famoso dos teoremas detestava tanto a leguminosa que se recusava até a olhar um feijoeiro, quanto mais esgueirar-se no meio de um feijoal.) Tycho Brahe, o desnarigado astrônomo dinamarquês do século 16, grande revisor do universo ptolomaico, poderia ter chegado aos 60 anos, ou ido além disso, se não tivesse deixado para fazer xixi depois de um banquete que durou horas - e culminou com o estouro da bexiga do astrônomo.
"Morte? Não penso nisso", vangloriava-se Jean-Paul Sartre. Foi uma exceção à regra. Cícero, citado na introdução de O Livro dos Filósofos Mortos, achava que "filosofar é aprender a morrer", acrescentando: "O medo da morte é o que define a vida humana neste canto do planeta, no momento presente." Montaigne recomendava que aqueles que ensinam as pessoas a viver, isto é, os filósofos, deveriam ensiná-las também a morrer.
Num dos quatro diálogos que Platão lhe dedicou, Sócrates comenta (para Símias) que "os verdadeiros filósofos exercitam-se para morrer", daí seu pouco ou nenhum temor da morte. "Eu destoaria, se, na minha idade, me agastasse por ter de morrer em breve", diz ao igualmente velho Critão, numa cela de Atenas, às vésperas de sua "execução".
Para Epicuro, o medo da morte e o anseio da imortalidade são os sentimentos que mais arruínam nossa passagem por este mundo. Viver bem e morrer bem tinham, para ele, o mesmo peso. Se a vida deve ser entendida como uma prática ou uma preparação para a morte ("Do ponto de vista da morte, a vida nada mais é que a produção de um cadáver", escreveu Walter Benjamin, que, aliás, se suicidou em 1942), o contentamento da alma é muito mais que um vão desejo, é uma obrigação.
Contrastando com pitagoreanos, platônicos e estoicos, Epicuro via a morte como uma extinção completa e a alma, como apenas um amálgama temporário de partículas atômicas. O pai do epicurismo morreu sete anos depois de Platão. Sempre adoentado, não resistiu às dores de uma cólica renal, mas despediu-se sorrindo, afiançando a amigos e discípulos que seu sofrimento fora sempre contrabalançado pela alegria proporcionada pelos exercícios do raciocínio.
Quase dois mil anos mais tarde, o empirista escocês David Hume se despediria dos vivos na maior euforia, apesar das fisgadas que lhe pungiam o abdome. Talvez porque, segundo inconfidência de James Boswell, o maior ateu de Edimburgo passara a acreditar na possibilidade de vida depois da morte. Até Sócrates, com o pé na cova, reconsiderou seu ceticismo. "Tenho uma boa esperança de que alguma coisa espere os mortos e, segundo velha tradição, seja muito melhor para os bons do que para os maus", revelou numa conversa com Fédon e Equécrates. E sorveu em paz sua cicuta.
Estadão – 07/03/2009- As lições de vida e morte dos grandes filósofos.
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