sábado, 10 de outubro de 2009

35 anos

Crepúculo em Cubatão, por Bob Wolfenson

Este ano, em março, fez 35 anos que saímos de Epitácio para morar na Baixada Santista. Achamos que iríamos morar em Santos, mas na verdade fomos para São Vicente, cidade vizinha, tão vizinha que o turista comum não percebe quando passa pelas duas divisas entre elas (na praia do José Menino e no monumento dos tambores , na zona noroeste. Fomos morar num sobradinho na rua Uberaba e depois mudamos para uma casa maior, na rua Rio de Janeiro, onde ficaríamos nos próximos dez anos, entre 1974 e 1984. Seria uma década revolucionária em nossa família, marcada por experiências incríveis e cheias de transformações. Nossa mãe teve essa intuição bem antes e não perdeu a chance quando surgiu a oportunidade. A vida em Epitácio havia atingido o limite para uma família grande e de poucos recursos: cinco filhos jovens com muitos sonhos, mas sem muitas perspectivas. A idéia inicial era irmos para São Paulo, como acontece com a maioria das famílias que passam pela mesma crise, mas optamos por uma cidade que não fosse tão grande como a Capital e não tão pequena como Epitácio. Santos, São Vicente, Guarujá, Cubatão e Praia Grande formam uma grande região composta por cidades medianas. Era a escolha certa e o lugar perfeito. Saímos na madrugada e chegamos no litoral perto do meio dia. Parte da nossa mudança foi levada numa camionete do Jorge Okada. No dia anterior, no feriado municipal de 27 de março de 1974, ficamos no jardim até quase meia noite nos despedindo dos amigos. Estávamos todos eufóricos e apreensivos. Esse sentimento permaneceu durante toda aquela semana de novidades. Bem diferente do que é hoje, São Vicente era muito pequena e funcionava como cidade dormitório. Trabalhar, estudar, fazer compras, tudo era feito em Santos – no Gonzaga ou no centro velho, próximo à zona portuária. Andar nos coletivos era um excelente programa porque todos circulavam a grande Ilha de São Vicente, que inclui Santos e São Vicente. O circular 7 ia pelas praias em direção ao ferry-boate e o circular 8 fazia o sentido inverso. Alguns deles percorriam os canais principais (1 e 2) em direção à Vila Belmiro e ao túnel. Tudo era muito fascinante. Sempre escolhíamos o percurso mais longo, para aproveitar a paisagem. O cheiro de mar e da vegetação litorânea eram muito fortes e completamente diferente de tudo que o nosso olfato conhecia. Além dos pontos turísticos, nossa diversão preferida era ver a entrada dos navios na barra da Ponta da Praia. Navios enormes, de todas as nacionalidades. Também gostávamos muito das visitas aos vasos de guerra e submarinos, nacionais e estrangeiros. Num deles fomos visitar o jovem marujo epitaciano Salvador Miazaki. Tudo isso ia se acumulando no baú das nossas emoções e não víamos a hora de retornar para Epitácio e contarmos tudo em detalhes para os colegas. Isso aconteceu pela primeira vez no mês de julho – que na época estava bem frio. Uns parentes baianos da minha avó tinham sofrido a perda do filho mais velho ( que morava no Morro do São Bento, juntamente com dois irmãos) e fizeram essa viagem de volta com a gente. Levei na bagagem um vidro com água do mar, para mostrar para o Gilmar Saraiva. Em pouco tempo já havíamos adotado um sotaque santista (o abusivo e incorreto uso do “Tu” antes das frases –Tu vai, Tu foi, etc) , logo motivo de muito sarro e indignação dos colegas. Quando chegamos fomos logo procurar a turma no campinho de futebol, num terreno na rua Cuiabá, em frete a Serraria do Lopes. A manhã estava deliciosa, fria e ensolarada, e a maioria da garotada usava aquelas japonas de nylon “dupla face”. A irmã da minha avó Maria, mãe do rapaz morto em Santos, veio para morar em Epitácio. Elas não se viam há mais de 40 anos. Foram morar na chácara do meu avô, na Estrada Boiadeira Norte, próximo da rodovia marginal. Terminadas as férias, voltamos para o litoral, agora com outros olhares e outros projetos. Tudo o que aconteceu certamente daria um livro de memórias com muitos capítulos. Novas experiências, novos vizinhos, novos amigos. Momentos difíceis e coisas maravilhosas, inesquecíveis. De todas elas, a que marcou mais foi a ajuda espiritual – numa reunião de Evangelho - que recebemos de uma entidade feminina desencarnada em Epitácio. Velha amiga da família, ela nos deus conselhos e consolos preciosos nas horas incertas. Estávamos nos preparando para uma segunda etapa de mudanças. Na década seguinte – entre 1984 e 1990, fomos todos para São Paulo para complementar essa primeira fase de transformações.

Vista da orla de São Vicente e Santos a partir da praia do Itararé


Quando fomos morar em São Vicente tinha eu 12 anos de idade. Éramos cinco irmãos e mais um jovenzinho de três meses chamado Natalino, cujo irmão gêmeo Natal havia desencarnado por causa de complicações do parto. Enquanto a mãe estava no hospital lutando pela vida, Natalino e os outros seis irmãos foram colocados sob os cuidados dos nossos familiares até que as coisas voltassem ao normal. Jamais voltariam. A mãe de Natalino também desencarnou. O pai, um oleiro ribeirinho do Porto XV, em completa situação de miséria, recolheu os filhos e voltou para a sua batalha diária. Amigos nossos tentaram adotar os irmãos mais novos, mas o pai não cedeu. A irmã mais velha cuidaria dos menores. Natalino foi o único que não voltou. Para a nossa surpresa, o pai disse que, se quiséssemos ficar com a criança, ele deixaria de bom grado. A nossa mudança para o litoral paulista já estava decidida e não havia nenhum plano de adoção para Natalino. Dias antes da mudança nosso pai chegou em casa com alguns documentos para nossa mãe assinar. Estava consumado. Natalino era o mais novo membro da família. Ele havia nascido em 23 de dezembro de 1973 e na tarde de 28 de março do ano seguinte já estávamos descendo pelas curvas da Via Anchieta em direção à Baixada Santista. Tudo foi muito rápido e assustador para os adultos, porém muito emocionante para as crianças. Nossos pais eram funcionários públicos e optaram pela mudança para aguardar uma nova orientação sobre o futuro profissional deles no Ministério dos Transportes, junto ao porto de Santos. As coisas seguiram o seu curso, mas nossa mãe, de vez enquando, nos dizia que um Espírito feminino muito luminoso visitava Natalino durante a noite. Nossa mãe, filha de retirantes nordestinos, tinha sido criada por Dona Manoela Borges, uma senhora que mais tarde tornou-se madrinha de todos nós e que também havia desencarnado dois anos antes do nascimento de Natalino. Ela era filha de um índia xavante com um desbravador vindo da região de Porto Feliz. Certa ocasião, visitando um tia-avó numa viagem ao interior, nossa mãe recebeu dela, sem que estivesse esperando, a informação que há alguns anos buscava: “Esse menino é parente da Dona Manoela, é o pai dela. Você tem uma dívida com ela e esse menino precisa muito da sua ajuda". Também ficamos sabendo depois que a nossa vinda para São Vicente não tinha sido uma simples escolha. Tínhamos coisas importantes para aprender e realizar na antiga Vila onde em outros tempos tínhamos adquirido as primeiras lições do Evangelho pelas mãos dos jesuítas.



Mapa paulista do final do século XIX: a região oeste permaneceu "milagrosamente" intacta por mais de 300 anos.


Séculos mais tarde, quando a região oeste de São Paulo estava sendo ocupada pelos mineiros (antigos paulistas ou vicentinos), o Capitão Francisco Whitaker, por ordem do governador de São Paulo, lançou-se numa expedição pelos rios Tietê e Paraná com a missão de fundar um porto na divisa com Mato Grosso, na região inóspita do Pontal do Paranapanema. A expedição foi organizada nos mesmos moldes das antigas monções, caravanas de batelões fluviais em busca do sertão distante. A missão foi realizada com êxito e em primeiro de janeiro de 1907 eles desembarcaram na barranca paulista do Paraná e ali fundaram o Porto Tibiriçá. O empreendimento era uma preparação para receber gado de corte da região mato-grossense de Vacaria , que seria conduzido por uma estrada boiadeira entre Tibiriçá e Indiana, a estação mais próxima da Ferrovia Sorocabana, distante 105 quilômetros. A Madrinha Manoela sempre nos contava que o pai dela, seu Daniel, estava na expedição histórica de Francisco Whitaker, o último bandeirante paulista e descendente de vicentinos. São Vicente tinha sido a primeira vila a ser fundada na Capitania , em 1532, e o Porto Tibiriçá a última. Eles haviam completado um ciclo de quase cinco séculos (475 anos). E nós, tibiriçaenses, há exatamente 35 anos, estávamos de volta, ao som das ondas e do cheiro da maresia, agora para aprender na Mocidade e na Escola de Aprendizes do C. E. Irmão Timóteo as lições renovadoras do Espiritismo. Dois anos antes da nossa chegada, em 1972, o grande médium e escritor italiano Pietro Ubaldi despedia-se de São Vicente, cidade que escolhera viver os últimos dias da sua existência e que dizia ser um recanto muito querido do seu velho espírito, desde os tempos do Padre Manoel da Nóbrega.



Maurão, Mia, eu e Bill, jovens músicos do Grupo Manvantara na travessia do Canal de Bertioga , 1981.

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