sábado, 3 de outubro de 2009

Adão não estava lá


“Adão ainda não tinha vindo. Porque eu via um homem, dois homens, muitos homens e no meio deles eu não via Adão e nenhum deles conhecia Adão. Eram homens primitivos, esses que meu espíritos absorto, contemplava. Era o primeiro dia da Humanidade; porém, que humanidade, meu Deus!... Era também o primeiro dia do sentimento, da vontade e da luz; mas de um sentimento que apenas se diferenciava da sensação, de uma vontade que apenas desvanecia as sombras do instinto.

Primeiro que tudo o Homem procurou o que comer; após, procurou uma companheira, juntou-se com ela e tiveram filhos. Meu espírito não via o Homem do Paraíso; via muito menos que o homem, coisa pouco mais que um animal superior. Seus olhos não refletiam a luz da inteligência; sua fronte desaparecia sob o cabelo áspero e rijo da cabeça; sua boca, desmesuradamente aberta, prolongava-se para adiante; suas mão pareciam com os pés e frequentemente tinham o emprego desses; uma pele pilosa rija cobria suas carnes duras e secas, que não dissimulavam a fealdade do esqueleto.
Oh! Se tivésseis visto, como eu vi, o Homem do primeiro dia, com seus braços magros e esquálidos caídos ao longo do corpo e com suas grandes mãos pendidas até os joelhos, vosso espírito teria fechado os olhos para não ver e procuraria o sono para esquecer.

Seu comer era como devorar; bebia abaixando a cabeça e submergindo os grossos lábios nas águas; seu andar era pesado e vacilante como se a vontade não interviesse; seus olhos vagavam sem expressão pelos, como se a visão não se refletisse em sua alma; e seu amor e seu ódio, que nasciam, de suas necessidades satisfeitas ou contrariadas eram passageiros como as impressões que se estampavam em seu espírito e grosseiros como as necessidades em que tinham sua origem.

O Homem primitivo falava, porém não como o Homem: alguns sons guturais, acompanhados de gestos, os precisos para responder às suas necessidades mais urgentes. Fugia da sociedade e buscava a solidão; ocultava-se da luz e procurava indolentemente nas trevas a satisfação das suas exigências naturais. Era escravo do mais grosseiro egoísmo; não procurava alimento senão para si; chamava a companheira em épocas determinadas, quando eram mais imperiosos os desejos da carne e, satisfeito o apetite, retraía-se de novo à solidão sem mais cuidar da prole.
O Homem primitivo nunca ria; nunca seus olhos derramavam lágrimas; o seu prazer era um grito e sua dor era um gemido. O pensar fatigava-o; fugia do pensamento como da luz. E nesses homens brutos do primeiro dia o predomínio orgânico gerou a força muscular; e a vontade subjugada pela carne gerou o abuso da força; dos estímulos da carne nasceu o amor; abuso da força nasceu o ódio, e a luz, agindo sobre o amor e sobre o tempo, gerou as sociedades primitivas.

A família existe pela carne; a sociedade existe pela força. Moravam as famílias à vista de todos, protegiam-se, criavam rebanhos, levantavam tendas sobre troncos e depois caminhavam sobre a terra. O Homem mais forte é o senhor da tribo; a tribo mais poderosa é o lobo das outras. As tribos errantes, como o furacão, marcham para adiante e, como gafanhotos, assaltam a terra onde pousam seus enxames.”
João Evangelista – Espanha, 1882 – Roma e o Evangelho, José Amigó y Pellicer – FEB Editora



Cenas de A Guerra do Fogo, de Jean-Jacques Annoud. França/Canadá, 1981

Nenhum comentário: