domingo, 17 de janeiro de 2010

Em busca de Kardec educador


Hipolyte-Léon-Denizard Rivail certamente era alguém muito envolvido com a educação. Mas será que Allan Kardec Kardec era também um educador?

Para responder essa questão começamos fazendo uma segunda pergunta: Hipolyte-Léon-Denizard Rivail educador e Allan Kardec ativista espírita eram a mesma pessoa?

Continuamos com a firme opinião de que as pessoas físicas eram as mesmas, porém intelectual e espiritualmente tais pessoas se tornaram no decorrer dos anos duas personalidades muito distintas.

Todos nós sabemos que, ao se envolver nas atividades de pesquisas e divulgação do Espiritismo, H.L.D. Rivail escolheu o pseudônimo Allan Kardec exatamente para que o público não confundisse as duas pessoas: Rivail, anteriormente dedicado aos assuntos educacionais, dos quais afastou-se por motivos financeiros; e Allan Kardec, o ativista de uma nova ciência. Na época do seu ingresso no movimento espírita Rivail não era mais empresário da educação e trabalhava prestando serviços de revisor, contabilidade e eventualmente como professor particular. Antes de escolher o pseudônimo Kardec, Rivail não tinha a menor noção do que era o espiritismo fenomênico, muito menos das suas implicações filosóficas. Por que então ele teria algo a dizer sobre educação espírita? Durante os 14 anos que permaneceu como líder do movimento , redator da Revista Espírita e presidente da Sociedade Espírita de Paris, não houve da parte dele, nem de sua esposa Amélie, que também havia sido educadora, nenhuma referência específica ao assunto educação e ensino espíritas, a não ser algumas citações indiretas e esporádicas de temas paralelos e não propriamente educacionais.

Então, como encontrar o Allan Kardec educador?

Decorridos mais de cem anos da publicação das obras básicas do Espiritismo, Herculano Pires fez a transposição da filosofia espírita para uma estrutura teórica que ele imaginou ser espírita e idealizou como tal, substituindo e adaptando os pressupostos dos educadores humanistas históricos pelos conceitos espíritas. Mesmo assim, apesar da brilhante construção de hipóteses e reflexões, a idéia não repercutiu como prática social, exatamente porque sua proposta não possuía uma dimensão realizadora. Fundar uma escola na cabeça é fácil e faz parte da utopia pessoal de todos os educadores. Fazemos isso em todo o início de ano letivo. Depois geralmente nos perdemos nas veredas e surpresas do cotidiano escolar. Uma experiência educacional espírita cotidiana seria o grande desafio do nosso filósofo paulista e seus inúmeros discípulos pensadores e ausentes das salas de aula. Estes, como o mestre, flutuam nas altas esferas dos textos, debates, congressos, cursos, apostilas, projetos, mas não conseguem vencer essa barreira gravitacional da mente e fincar os pés no chão, abrir sulcos na terra e colocar as sementes no vazio das carências humanas que aguardam ansiosamente pelas lições do Espiritismo no dia-a-dia. Isso é feito nos centros espíritas mais simples, de maneira informal e eficiente, mas não funciona no espaço escolar, em aulas formatadas e formalizadas.

Como resolver esse impasse?


Também continuamos com a firme opinião que estamos pensando de forma incorreta e batendo em porta errada. Primeiramente é preciso definir o que estamos procurando e depois decidir onde vamos procurar.

Recentemente um amigo nosso reescreveu um antigo ensaio sobre os celtas e sua relação com o Espiritismo. Como educador, entre muitos outros aspectos, percebemos que tal relação pode ser encontrada no druidismo, uma escola iniciática que revelava aos alunos as mesmas coisas que os Espíritos nos revelaram através das obras de Allan Kardec. A primeira pergunta que fizemos ao ler o ensaio foi sobre a questão educativa dessa escola dos celtas. Como um celta comum se tornava druida? Que tipo de transformação acontecia nessa experiência educativa? Como essas transformações eram provocadas nos alunos?

Essa experiência educativa dos celtas pode ser conhecida e explicada? Podemos aprender algo útil com elas?

Se continuarmos a cometer o mesmo equívoco histórico ao tentar associar Rivail e Allan Kardec como personalidades únicas ao assunto educação e ensino, continuaremos procurando em vão. Se persistirmos nesses elos de ligação histórica da abordagem cronológica seqüencial e simplista - Comenius, Pestalozzi, Rousseau, Rivail, Allan Kardec e Espiritismo - continuaremos sem rumo e sem currículo. E agora tem uma ramificação temática também historicamente pouco esclarecida: a experiência de Eurípedes Barsanulfo em Sacramento, no Colégio Allan Kardec. Eurípedes foi mais ousado do que Kardec e construiu um currículo inovador e que, perdeu-se no tempo após o seu desencarne. Os relatos e estudos sobre sua experiência atestam a inovação , mas não oferecem uma síntese clara sobre o que era realmente essa prática educativa do colégio, como identificamos nitidamente nas experiências de outros educadores históricos. Ele era espírita, vivia o Espiritismo 24 horas por dia e certamente respirava uma educação que ele pretendia ser espírita. Mas onde está a síntese em si? Levou junto com ele para o mundo dos espíritos, nas altas esferas onde habita, segundo relatos de Chico Xavier. Ficaram os exemplos educativos nos alunos, mas não o “sistema espírita”. Ainda bem, porque tal "sistema" nunca existiu e se existisse já estaria seriamente adulterado pelo formalismo. Sacramento foi, ao nosso ver, a pura vivência do amor e da educação cristã que ele adquiriu na Sociedade São Vicente de Paulo, altamente expansiva e diferenciada naquele contexto pela sua mediunidade maravilhosa, espontânea e natural. Suas aulas certamente eram ilustradas pela sua visão espírita de mundo, mas isso qualquer educador espírita faz naturalmente sem necessariamente sistematizar tal experiência num currículo formal. Só não fazemos como Eurípedes fez porque somos mais limitados e tímidos. Como já dissemos, em "Espíritos nas Escolas", os alunos descobrem que somos espíritas pelas nossas ações e não pelos nossos discursos e propostas didáticas.

E as teses acadêmicas da pedagogia espírita? Não possuem valor? Não indicam rumos?

Pensamos que elas ainda não atingiram o nível satisfatório para resolver todas essas questões. São tentativas válidas como teoria e reflexão, mas seguem os passos de Herculano e não compreendem os fenômenos cotidianos da educação. Não sabemos como essas teses sobre educação espírita foram analisadas ou validadas academicamente. Mas isso não tem nenhuma importância porque esse não é o principal problema, já que a academia (ora, a academia) tem lá também os seus limites e vícios. O valor delas não está nas notas obtidas ou na aprovação institucional. O grande valor estaria no impacto social das mesmas. A maioria das teses são elaboradas sem que as bancas tenham o mínimo de condição de questioná-las integralmente, pois as dissertações são feitas rigorosamente dentro dos cânones lingüísticos e metodológicos exigidos. Isso é suficiente para desviar a atenção de outras problematizações que elas ocultam. Durante a nossa dissertação de mestrado falamos da história do Espiritismo e do ofício do historiador espírita para uma banca de doutores em Comunicação e Sociologia, porém leigos na doutrina e nas temáticas específicas da historiografia. Nossa orientadora nos protegeu com tanta fidelidade e cuidado, superando naquele instante inclusive o nosso Espírito protetor. Não houve nenhuma contestação significativa porque o assunto não era a história em si, mas os problemas sociais e lingüísticos da escrita historiográfica voltada para a temática espírita. Muito respeitosos e atentos ao cerne do tema, os avaliadores simplesmente conduziram os debates e questionamentos dentro daquilo que foi proposto na dissertação. Em nenhum momento aventou-se a crença espírita ou a credibilidade dos fenômenos. Aliás, teve sim, a professora Yolanda Lullier, da Escola de Comunicação e Artes da USP, talvez percebendo o nosso nervosismo e preocupação, nos lembrou que já havia tido provas irrecusáveis da imortalidade do pai desencarnado e que era descendente de colonos franceses do Say. Tal revelação foi pública e espontânea e causou surpresa até mesmo em nossa orientadora, que desconhecia os fatos.

Mas, voltando ao assunto, onde está o erro e onde está a solução?

O erro da abordagem feita pelos pedagogos espíritas é que ela já fez a transposição teórica do Espiritismo para e filosofia da educação, mas ainda não encontrou os elementos para a implantação cotidiana dessas reflexões. Isso por que, por um equívoco histórico, ainda comete o erro filosófico de ignorar a transformação intelecto-moral de Rivail em quase quinze anos como militante espírita. Rivail se tornou Kardec através de um processo moral-educativo. Esse é o fio da meada. Como isso aconteceu? Como essa experiência pode ser transposta para uma prática educativa cotidiana? Nesse período é que as teses devem se concentrar. Edgard Armond matou essa charada há mais de meio século e aplicou socialmente a idéia. Fez ao seu modo iniciático, tal como os druidas. Na FEESP essa idéia foi sendo desviada das suas bases educativas e caiu num sistema escolar tradicional, pobre e ineficiente em relação ao modo iniciático original. Não estamos falando da ideologia e da visão espírita de mundo que ele tinha. Isso é outra história e nesse aspecto Eurípedes Barsanulfo não era diferente dele. Mas ambos eram pessoas práticas e realizadoras. Ambos insistiam na idéia da transformação moral como método e meta escolar. Se não entendemos como ocorre essa mudança moral – que não é somente uma experiência teórica - consequentemente não conseguimos demonstrar objetivamente o que pretendemos como prática escolar espírita. Estamos falando da escola como proposta e prática educativa. Na mesma FEESP e em alguns outros lugares surgiram outras experiência educacionais, mas que não tiveram repercussão social, fora dos muros e paredes da instituição.

Isso no leva a uma última questão: será que os espíritas realmente estão interessados em educação ou numa educação específicamente espírita?

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