Desde sexta-feira, 29 de agosto, os espíritas brasileiros têm nas próximas semanas um compromisso histórico, obrigatório e intransferível. É o ingresso decisivo do Espiritismo no cinema nacional: direção, roteiro, produção, atuação, tudo feito com arte, carinho e dedicação de artistas espíritas. Só falta o público espírita da primeira hora, o exemplo para alavancar as bilheterias e transformar o sonho em realidade. Se for sucesso de público, têm todas as chances de ir para a TV e para o mercado internacional
Realizado com a mais avançada tecnologia digital e finalizado em 35mm, o longa-metragem “Bezerra de Menezes - O Diário de Um Espírito” fará uma fiel reconstituição de época para representar o Ceará e o Rio de Janeiro do Século XIX. Com cuidadosa pesquisa história de Luciano Klein, biógrafo de Bezerra de Menezes, aliada a extensa pesquisa iconográfica nos acervos mais importantes do país, a vida de Bezerra de Menezes será contada com passagens ficcionais e relatos de pesquisadores de sua vida e obra. A produção teve locações no Ceará, Pernambuco e Rio de Janeiro e contou com o talento do ator Carlos Vereza interpretando Bezerra de Menezes, além de grande elenco de artistas cearenses.
O Médico dos Pobres
Antes de Eurípedes e Cairbar, dois personagens também tiveram atuações marcantes como pioneiros do Espiritismo apostólico no Brasil: educadora Anália Emília Franco e o médico Adolfo Bezerra de Menezes.O Dr. Bezerra, cearense de Riacho do Sangue e conhecido no Rio de Janeiro como “o médico dos pobres”, interessou-se pelo Espiritismo ao ler O Livro dos Espíritos, presente do seu primeiro tradutor em língua portuguesa, o Dr. Joaquim Carlos Travassos. Alguns anos depois, no dia 17 de agosto de 1886, diante de um público de quase duas mil pessoas, no salão de honra da Guarda Velha, declara sua adesão à Doutrina Espírita. Essa atitude tinha sido provocada por um teste pelo qual Bezerra submetera a mediunidade do homeopata João do Nascimento. Bezerra solicitou uma receita para si mesmo, dando dados pouco esclarecedores sobre sua saúde. O diagnóstico veio rápido e confirmava a existência de uma dispepsia. A notícia foi dada em diversos jornais da Capital como mais um simples evento cultural promovido pela Federação Espírita Brasileira. Porém, o seu protagonista não era mais um dentre os inúmeros conferencistas que lá compareciam para expor suas idéias e sim uma espécie de mito vivo, daqueles que as pessoas comuns e as existencialmente indecisas ficam observando, ainda que de forma inconsciente, olhando-as como bússolas a oferecer um Norte para suas vidas sem rumo:
“Foi grande ontem a concorrência de senhoras e cavalheiros no salão da Guarda, para ouvirem o Dr. A. Bezerra de Menezes. O orador começou explicando os motivos poderosos que o levaram a abraçar o Espiritismo, dentre os quais denominava o preceito de que os princípios da religião estão fora do alcance da compreensão da razão, preceito que assim inutiliza a ação da mais elevada faculdade do homem. Foi estudando a moral e a teogonia romana que o orador se convenceu da veracidade dos ensinos espiríticos, completamente conformes com aquela, e se discordam desta, é por ser esta, como ele demonstra, o fruto de interpretações humanas. Tratou depois largamente da Doutrina Espírita; sendo acolhido, ao terminar, por calorosos aplausos”
Sobre a leitura da primeira edição brasileira de O Livro dos Espíritos, publicada em 1875 pela livraria Garnier, Bezerra comentou depois que, ao ler Allan Kardec, tivera uma dupla reação: ficou, ao mesmo tempo, admirado com aquele universo de revelações e também com a sensação de que nada daquilo lhe era estranho. Seu anúncio em público teve um grande impacto na Corte Imperial, pois o regime era ainda muito atrelado ao clero católico. Além disso, Bezerra havia sido vereador por dois mandatos e tornara-se deputado-geral. Escrevia, agora, artigos espíritas sob o pseudônimo de “Max” no jornal “O Paiz”, dirigido por Quintino Bocaiúva. A família deixada no Ceará também não lhe perdoou o gesto, acusando-lhe de renegar a religião de berço, como se renegasse o leite materno. A crítica vinha de um irmão e foi para ele que Bezerra enviou uma carta na qual expõe todo o seu sentimento sobre o novo compromisso ideológico. A carta tornou-se um dos opúsculos mais lidos de Bezerra e, num dos trechos, o bom médico confessa ao irmão o porquê da mudança:
“Não sou cristão, porque meus pais me criaram nessa lei e me batizaram; mas, sim, porque minha razão e minha consciência, livremente agindo, firmaram minha fé nessa Doutrina sublime, que, única na Terra, eleva o Homem, em Espírito, acima da sua condição carnal – que, por si mesma, se revela obra de infinita sabedoria, a que o Homem jamais poderá chegar. Tendo diante dos olhos de minha alma o código sagrado da revelação messiânica, procuro, sem descanso, arrancar de mim os maus instintos naturais e substituí-los pelas virtudes cristãs. Tendo fé, tenho esperança e, quanto à caridade, procuro tê-la o mais que me é possível, na medida do ensino de São Paulo. Não guardo ódio e perdôo as injúrias, evito fazer o mal e procuro fazer bem aos próprios que me odeiam.”
Nesta carta encontramos uma concepção muito diferenciada do Espiritismo que se praticava naquela época, no Brasil e na Europa, e que veio persistindo e ainda persiste em nossa época. Note-se que Bezerra de Menezes já havia superado as primeiras características das pessoas que se tornam Espíritas, apontadas por Allan Kardec. Tinha plena consciência da importância da transformação moral e do que era o trabalho de auto-análise e reformulação interior e qual o papel que o Espiritismo tinha que realizar nesse setor delicado da experiência humana. Aliás, como mudar a sociedade se não houver mudança de comportamento e de atitudes? Se não era essa a finalidade do Espiritismo, qual a vantagem de deixar de ser católico, protestante ou mesmo ateu? Por que adotar um novo ideal de vida, se continuamos esperando que as mudanças venham de fora para dentro? Deve ter sido essa a intenção de Bezerra ao responder ao irmão o significado da sua nova fé. É bem verdade que tais mudanças não ocorreram somente no campo intelectual e no muno do teórico-filosófico. Nem tudo era poesia e calmaria, pois na sua trajetória existencial as mudanças foram precedidas por severas provações severas, como um processo de adubação do solo moral. O biógrafo Francisco Acquarone mostra que o nome e a legenda em torno de Bezerra de Menezes foram construídos com sacrifícios e decepções que a maioria dos destacados militantes do Movimento Espírita nem ousaria pedir como prova. De fato, a vida de Bezerra foi, sem exagero, de completa renúncia, longe do egoísmo e da busca de notoriedade que tanto cultivamos e buscamos em nossas medíocres experiências, na vida comum e no ideal espírita. Bezerra não fez parte do corpo de trabalhadores espíritas da primeira hora, mas, pela própria natureza do seu caráter, se impôs, sem o querer, como o líder natural de todos os nomes que aparecem na lista dos históricos fundadores do Movimento Espírita Brasileiro. O Bezerra encarnado, militante espírita, político, ser humano sujeito aos altos e baixos da rotina cotidiana, é bem diferente desse Bezerra Espírito, cuja imagem mística foi sendo construída ao longo dos anos e que tendeu para uma espécie de santificação, dado o grande interesse do público religioso pelas suas atividades curativas. Muitos se chocam ao saber das suas preferências doutrinárias, das suas batalhas políticas contra os adversários ideológicos, achando que, pelo fato de ter sido um cristão exemplar, era ingênuo, imaturo e se deixava levar pela leviandade de querer agradar a todos. Todos os membros do Grupo Confúcius, sem exceção, viam em Bezerra uma autoridade espontânea para conduzi-los na busca de seus objetivos. Isso significa que viam nela a difícil habilidade de gerir conflitos. Eram elementos ligados à Medicina Homeopática e conheciam a história do médico que abandonara a estabilidade da vida militar, para dedicar-se aos riscos da política; conheciam também a sua fama de médico cristão e profundamente caridoso. Mas seu prestígio parlamentar e sua notoriedade moral não eram meros acessórios sociais e sim ferramentas para remover obstáculos que exigiam muita paciência e obstinação. Foi desse grupo, que durou apenas três anos, que surgiram as primeiras traduções brasileiras das obras de Allan Kardec.
Bezerra era orientado, pessoalmente, pelo Espírito Santo Agostinho, o propositor da idéia do compromisso e da técnica de reforma íntima, contida nas questões 918 e 919 de O Livro dos Espíritos. No auge do cisma, para convencer Bezerra a dirigir a Federação Espírita Brasileira, naquele momento um autêntico “presente de grego”, Bittencourt Sampaio sugeria-lhe a prática da homeopatia para viver dignamente e doar-se sem preocupações ao novo trabalho. Bezerra respondeu que não entedia “patavinas” de homeopatia e que usava a medicina dos Espíritos e não as dos médicos. O médium Frederico Júnior também estava presente e, através dele, manifestou-se Santo Agostinho, confirmando as palavras de Sampaio e querendo dizer que Bezerra fazia muito mais do que os homeopatas. Bezerra reagiu, educadamente, perguntando a Agostinho se lhe sugeriam ganhar dinheiro com o Espiritismo. O Espírito respondeu certamente que não, mas que o ajudaria a ganhar a vida dignamente e que, nas horas mais difíceis, lhe traria “alunos de matemática”. Bezerra entendeu o recado lembrando que, certa vez, num momento de dificuldade financeira, quando ainda era aluno da faculdade, apareceu alguém pedindo-lhe aulas particulares de matemática; o cliente pagou adiantado e nunca mais voltara para tomar uma única lição. O Espírito Agostinho insistiu para que Bezerra aceitasse o convite de Sampaio, lembrando que a união dos Espíritas dependia da sua boa vontade de homem e que eles, os Espíritos, dependiam dela para realizar o trabalho deles. O convite foi aceito e daí em diante o movimento espírita, como todos sabemos, não foi mais o mesmo. Bezerra deu a ele um novo tom, uma nova afinação com o seu diapasão inconfundível. Além da natural presença de espírito, marca pessoal de sensibilidade, Bezerra trazia uma enorme bagagem política, fator que facilmente poderia denegrir a imagem do Espiritismo, mas que em suas mãos significou um habilidoso instrumento de negociações num grave e delicado momento da efetivação da Doutrina em nosso país. Para os espíritas e adversários do Espiritismo Bezerra possuía todas as virtudes que engrandeciam ou os defeitos que diminuíam a importância da mesma. Mas para a opinião pública, tradicional expectadora de exemplos, ele continuava sendo inatacável, pois o seu perfil humanista estava acima de qualquer opinião doutrinária. Quando do seu desencarne, também a maioria dos jornais fluminenses noticiou o fato e nenhum deles deu publicidade de sua crença ou filiação filosófica, mas sim ao caráter e a imagem que os habitantes da cidade do Rio Janeiro tinham da sua pessoa:
“Sucumbiu ontem, às 11h30, após longos e dolorosos padecimentos, que foram a última prova imposta à sua resignação verdadeiramente cristã, o eminente brasileiro cujo nome, encimando estas linhas, como homenagem póstuma às virtudes da sua vida, por tantos anos fulgurou nos anais da política do império e hoje, apenas vive na tradição dos que o amaram, ou da inexaurível fonte da sua bondade receberam inesquecíveis benefícios. Foi esta a característica essencial do venerado extinto. Político militante, filiado à mais adiantada parcialidade do antigo Partido Liberal, deputado, vereador da extinta Câmara deste município, a cujos destinos por longos anos presidiu; escritor – que o era com raro merecimento e brilho – em todas essas manifestações da sua atividade, deu sempre o Dr. Bezerra de Menezes as mais brilhantes provas de sua capacidade, do seu valor moral e intelectual; mas foi sobretudo no abnegado sacerdócio da sua clínica e na doce penumbra da sua vida íntima que mais refulgiram os peregrinos dotes de seu espírito, multiplicando-se em desvelos, em solicitude, em carinhoso desinteresse por todos os que sofriam. E jamais bateu um desses, enfermo ou necessitado, inutilmente á sua porta.Tempo houve em que, fascinado pelo desejo de servir á sua pátria, em cargos públicos, exclusivamente de confiança popular, como acabamos de aludir, substituiu o exercício da Medicina pela tribuna parlamentar ou pelos onerosos encargos de chefe da Municipalidade, em que se conservou perto de vinte anos (...) Passou através das grandezas deste mundo e do fastigio do poder sem lhes sentir a vertigem, sobranceiro, indiferente, alheio a ambições, tendo pelas seduções da fortuna um desprezo que tanto contrasta com o culto hoje incondicionalmente rendido a essa mesquinha preocupação, cujo cultivo, em certas camadas da sociedade contemporânea, tanto rebaixa o espírito da nossa nacionalidade.É realmente edificante, no meio das ambições que na hora presente se disputam entre nós a posse das melhores posições, para a ostentação de inesperadas opulências, opor exemplo desse grande cidadão, que não é mera figura – encaneceu no serviço da Pátria e da Humanidade e, tendo entrado para a vida pública com fortuna, dela se retirou pobre, depois de haver exercido, gratuitamente por um largo período, o cargo de vereador, que não era então remunerado, em ter tido em suas mãos, como seu presidente, as chaves da Municipalidade, de que não se utilizou, senão para assegurar-lhe as condições de prosperidade, de que rezam as tradições desse tempo (...) Assim, de fato, viveu esse grande homem, misto de interesse, de abnegação, de fé e de grande moral, e que, de sessenta e oito anos, voltados à atividade constante do trabalho, extremo de ambições vulgares, sai da vida, deste charco, que o não conspurcou, cercado de uma auréola de virtude e através de uma glorificadora apoteose de bênçãos e lágrimas (...) A sociedade brasileira, particularmente a sociedade fluminense, contraiu com o venerando morto uma dívida que, revertendo em benefícios de sua família, honrará a memória daquele que tantos serviços lhe prestou. Resta que a pague, provando assim que a ingratidão não é a única moeda com que o povo costuma retribuir sacerdócios dos que serviram à Pátria e à Humanidade (...)” – O Paiz, 12 de abril de 1900.
NOVA HISTÓRIA DO ESPIRITISMO - Dos Precursores de Allan Kardec a Chico Xavier
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