sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Provas, deuses e heróis



Na Grécia antiga os jogos olímpicos eram uma celebração do Espírito Encarnado, um culto aos deuses, entidades imortais, isto é, evoluídas e mais experientes, que já habitavam o Olimpo, a utopia de um mundo perfeito e feliz dos gregos. Era também homenagem aos heróis, seres humanos que conquistavam esse status espiritual pelos seus esforços “hercúleos” durante a existência física. A maioria desses campeões das lutas contra si mesmos tinha sangue misto, pois eram considerados descendentes dos deuses, revelando suas origens divinas. Eles atingiam essa condição heróica superando os obstáculos do corpo e os limites da mente, sofrendo as mais duras provações circunstanciais.

Por inspiração dos gênios espirituais da Hélade, essas verdades, ainda que em metáforas, foram transpostas para as competições olímpicas, cujas provas difíceis certamente simbolizavam as dificuldades da vida e a exigência constante da coragem e da persistência. O soldado de Maratona, que sucumbiu fisicamente após correr 42 quilômetros para alertar sobre o perigo da invasão inimiga, tornou-se um exemplo universal dessa força moral. O corpo pereceu pelo esgotamento, mas o Espírito despertou forte, vibrante e vitorioso, sobretudo com intensa sensação de alegria pelo dever cumprido.

Esse evento cultural grego tinha também a intenção de cultivar a paz e a fraternidade entre as cidades-Estado, modelo político de todas as nações contemporâneas, seja da aristocracia ou da democracia. Era necessário tentar evitar a experiência dolorosa e destrutiva das guerras, mesmo fracassando nesse aspecto, que é na verdade uma fraqueza das civilizações.

Ainda hoje, como vemos, os jogos da Antiguidade repercutem fortemente nos tempos e entre os países modernos. Neles enxergamos nitidamente os ideais de Esparta e de Atenas. A China, terra de Confúcio e Lao Tsé, exemplo secular de paciência e superação, mesmo passando recentemente por uma difícil provação coletiva, preparou para o mundo uma grande festa para honrar a sua luta e vitória contra a adversidade.


A habilidade e a competência espiritual

“Estamos em guerra, não há dúvida (...) Refiro-me à guerra cotidiana, essa que pelejamos mal começa o dia. Guerra não declarada, não percebida pela maioria – mas guerra de fato (...) É a guerra do leite, da carne, do pão, da manteiga, do emprego, do amigo, do inimigo, do lotação, do trem , do elevador. Batalhas tachistas, indeterminadas e sinuosas. Não obstante, duras.”- Ferreira Gullar – in “O Menino e o arco-íris”


O exercício moral está para o espírito assim como o exercício físico está para o corpo. O exercício fortalece o corpo e dá a ele maior resistência ao cansaço e esgotamento gerados pelos esforços desgastantes. Já o exercício moral fortalece o espírito, dando ao mesmo maior resistência ao desânimo,à desesperança e desencantos causados tanto pelas decepções e fracassos corriqueiros do dia-a-dia, quanto nas grandes provações da existência. O exercício físico transforma o corpo numa ferramenta precisa, que obedece com sincronia elétrica ao comando do cérebro. O exercício moral também transforma faculdades mentais do espírito em instrumentos de alta precisão psíquica, sob controle da força de vontade e da espontaneidade das atitudes nobres. O primeiro integra o ser nos ambientes externos, onde sofre e resiste aos obstáculos e limites biológicos dos planos objetivos da matéria. O segundo integra o ser no seu ambiente interno, onde ele também sofre e resiste aos obstáculos e adversidades psicológicas, no plano subjetivo.

É verdade antiga e notória que o aperfeiçoamento do corpo físico fortalece o espírito, assim como o aperfeiçoamento mental reflete no corpo físico, em forma de força e resistência. Mas, apesar dessa admirável reciprocidade, a questão que nos parece essencial é que o corpo físico é sempre efêmero, transitório, um meio instrumental, enquanto o espírito é imortal, eterno e de finalidade evolutiva permanente. Um morre, em espiral regressiva, e se transforma nos elementos da sua origem material. O outro sobrevive e também se transforma, em espiral progressiva, retornando ao convívio das suas origens espirituais.

Então, na experiência existencial, o produto dessa integração corpo-espírito é que o espírito sempre colhe os melhores resultados dos esforços despendidos durante as provas. O produto do esforço físico termina no túmulo, se dele o espírito não souber subtrair dividendos psicológicos positivos. Já o produto do esforço espiritual supera a escuridão do túmulo e da consciência e penetra nos ambientes cada vez mais iluminados e perfeitos do universo metafísico, onde o corpo físico e suas sensações grosseiras e exteriores não possuem nenhuma utilidade. Nesses planos sutis o ser realiza experiências através dos sentidos interiores – a emoção equilibrada, a intuição, a clarividência – e muitas outras percepções ainda desconhecidas nos mundos físicos.

As faculdades psíquicas de alta precisão e percepção, típicas das inteligências superiores, somente são desenvolvidas através das experiências morais probatórias, pelo despertamento consciencial. Nelas o espírito, por vontade própria ou por imposição expiatória, se envolve em situações críticas, de alto risco existencial, porém de alta potencialidade ressurreicional. Nessas circunstâncias, não bastam, portanto, o uso das inteligências lógicas, mas sim das capacidades psicológicas, de habilidades emocionais, geralmente adquiridas nos momentos de graves decisões e escolhas delicadas. Essa inteligência superior, além dos limites da razão e maturada pelo sofrimento em mundos inferiores, está sintetizada na lei do livre arbítrio e no aforismo “a semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória”. Quem desconhece esse aspecto da educação metafísica não consegue compreender nem aceitar as provas, o sofrimento, a resignação e a humildade como poderosos fatores de inteligência e evolução espiritual. São esses os famosos tesouros que não enferrujam e que a traça não destrói. Este é o significado central da lição das bem-aventuranças ensinadas por todos os grandes educadores do espírito, iniciados na pedagogia cósmica e intuídos pela Consciência Universal.

Nas aparências exteriores, esses discursos crísticos e redentores – sempre vivenciais, exemplificados com atitudes – se mostram num primeiro momento, aos olhos comuns, como absurdos e contraditórios, pois que estão sendo observados somente pela ótica racional biológica. Mas, na perspectiva psicológica espiritual, essa aparência exterior se transmuta numa verdade nada absurda e contraditória, revelando as nuances do percurso entre a imperfeição e a perfeição relativa da experiência existencial; e depois desse primeiro estágio, o novo percurso entre a perfeição relativa e a perfeição absoluta, busca constante e infindável do nosso destino espiritual, sempre de acordo com o nosso esforço e merecimento.

O Monte Olimpo, na Grécia, utopia do mundo perfeito, destinado aos deuses da espiritualidade e aos heróis da carne.


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