domingo, 28 de junho de 2009

Guanabara, o seio do mundo

Complexo do Alemão, por Roberto Guerra


Ultimamente Fernanda sente-se atormentada por um pavor que no início lhe pareceu a conhecida síndrome do pânico. Um medo inexplicável, uma sensação de expectativa angustiante, que faz com que não durma e fique olhando pela janela, pensando em todas essas coisas. Quando dorme, tem sono profundo e acorda satisfeita. Fica intrigada com essa insônia sadia, logo transformada em preocupação indefinida, em algo que precisa ser feito, mas que não sabe o que é. Está em crise. Sabe e aceita isso como algo normal. Mas não consegue encontrar a solução. Está ficando cada vez mais preocupada. As mulheres da sua família sempre sonham coisas diferentes e intrigantes quando pressentem que mudanças graves vão acontecer. Há muitas décadas que isso não ocorria e sempre ficou sabendo disso através das conversas entre a avó paterna e as tias-avós, geralmente em ocasiões especiais, como os aniversários, velórios e casamentos. Isso explica, em parte, seu jeito misterioso e o olhar enigmático. Ela pertence ao núcleo burguês dos Vieira de Souto, uma antiga família portuguesa radicada há quase dois séculos no Rio de Janeiro. Eram todos provenientes do Porto e pequenas localidades próximas ao litoral , onde viveram séculos dedicando-se ao comércio de gêneros alimentícios. Muito experientes no segmento atacadista, os membros desse antigo clã tornaram-se ricos e influentes. Sempre foram admirados por seus clientes por serem muito discretos, sobretudo aqueles que tinham negócios nas colônias e certamente ligados aos altos funcionários da monarquia. Em tempos mais remotos, muitos haviam sido perseguidos por sua origens israelitas mas, como a maioria dessas vítimas da intolerância religiosa da contra-Reforma, adaptaram-se dolorosamente na condição de cristão novos, adotando inclusive nomes que lhes foram recomendados pelos anciãos de suas respectivas fratrias. Os primeiros parentes desse ramo da família chegaram para residir no Rio no início do século XIX, quando Portugal sofreu traumática invasão das tropas do general Junot, por ordem militar punitiva de Napoleão Bonaparte. Ao contrário dos núcleos que fugiram do país sob proteção da marinha real britânica, os Vieira de Souto deixaram Europa utilizando-se do fretamento particular de embarcações que faziam rota entre Cádiz e os portos do roteiro mercantil hispânico, do México até a região platina. A princípio acharam que poderiam ter se dirigido o Chile ou Argentina, mas obtiveram informações que nesses países – apesar dos ventos das mudanças liberais - ainda havia risco de hostilidade racial, por conta da grande influência do clero católico nos hábitos coloniais. Conheciam as cidades do norte e nordeste do Brasil, as quais já haviam sondado alguns empreendimentos, como Olinda e São Luis. Viam o Rio de Janeiro e o Brasil com uma certa desconfiança, pois eram avessos idéia da escravidão africana ali praticada em larga escala. Sempre condenaram o assunto nas rodas familiares e se mostravam indignados quando ficavam sabendo que algum membro do clã havia se envolvido com algum tipo de atividade ligada ao tráfico de negros para a América.

Educados na cautela para lidar com os momentos difíceis e na paciência milenar para fazer as mais graves escolhas na trajetória da sua raça, os Viera de Souto souberam esperar o momento mais favorável para tomar a decisão da mudança. Pensaram e repensaram e, embora ainda insatisfeitos e assustados com a própria decisão, resolveram finalmente se fixar na Guanabara. Nesses momentos de angústia com as coisas do destino a intuição das mulheres parece tomar de assalto o poder de escolha dos homens. Elas fecham o semblante, passam a usar trajes de cores mais escuras, reduzem a quantidade da alimentação e mudam até a rotina no cardápio diário. Tudo para chamar a atenção para a gravidade dessas circunstâncias. Não raro conversam entre elas sobre os sonhos que lhe causam forte impressão, nos quais escutam longas dissertações morais dos antepassados mortos, revelando nas entrelinhas dessa narrativas cheia de metáforas os detalhes dos acontecimentos futuros. Os homens não entenderiam logo de cara os significados desses acontecimentos do mundo espiritual, daí todo esse ritual preparatório para que tais revelações lhe chegasse de forma convincente aos ouvidos. Naqueles dias cinzentos e de noites frias e escuras muitas delas sonharam com paisagens paradisíacas que lembravam o Edem, cuja claridade do sol e as cores da natureza jamais havia penetrado nos seus olhos ou na imaginação despertada pelos relatos literários. Era um mundo totalmente diferente, no qual transitavam com muita liberdade e alegria todos os antepassados perdidos na longa diáspora. Eles viviam uma harmonia entre si, entre outros povos, incluindo seres selvagens, em franca alegria e tranqüilidade. Todos falavam do Messias, que não era especificamente alguém, mas uma grande reunião de almas em busca de um mundo melhor. Quando falavam do Messias lhe vinham a mente a figura a de uma tribo perdida no deserto – Ismael e Hagar – e outras que foram banidas pelas guerras sanguinárias em diversas épocas da Antiguidade. Dos sonhos relatados pelas mulheres o que mais causou impressão e dúvida foi o de uma viúva que parecia ter perdido a sanidade mental, pois sempre falava de coisas confusas e sem sentido. Segundo ela, o Messias havia se manifestado numa reunião feita num grande palácio de vidro, onde todos estavam sendo observados pelas demais tribos e todos os povos, esperando que uma importante decisão fosse tomada sobre o destino de Canaã. Na memória de todos que lá estavam ou que acompanham de lugares distantes estavam gravadas cenas horríveis de cadáveres terrivelmente magros, maltrapilhos e amontoados, sendo enterrados aos montes em extensas valas. Algumas delas se recusaram falar com os maridos sobre esse sonho da viúva e outras ficaram tão traumatizadas que preferiram apagar essa experiência de suas lembranças. As mais atrevidas perguntavam-se intrigadas no silêncio das noites por que não tinha coragem de recordar, já que não era de bom costume fugir da verdade. Então o pavor ia aumentando, pois algumas também se viam entre aqueles montes de corpos esqueléticos e não se perdoavam por ter permanecido em suas casas seguras e confortáveis quando tinham sido alertadas para fugir na direção da bússola e de lá para o Novo Mundo. A Guanabara, que os tamoios chamavam "seio do mundo" , escolhida como refúgio, na verdade não era um lugar estranho para eles. Os gênios espirituais que os conduziram para cá sabiam que a paisagem carioca já havia sido registrada em suas mais antigas lembranças desde os tempos em que os maiores navegadores da Antiguidade faziam aqui suas incursões exploratórias.

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