domingo, 28 de junho de 2009

Fernanda e Rafael

Mercado popular carioca no final do século XIX


Os personagens dessa história se enquadram perfeitamente nessas características das almas apontadas pelo Dr. Bezerra, espíritos que em sucessivas existências se atraíram pelas afinidades naturais das suas marcas íntimas e realizaram experiências de cumplicidade que os envolveram em curiosas tramas do destino. Acostumados ao conforto e às facilidades materiais, fracassam em seus programas encarnatórios, propostos por eles mesmos quando estão na erraticidade. Deixam a carne em situação de desequilíbrio, corroídos pela culpa, e quando retornam para as lutas físicas se vêem em situações contraditórias que exigem escolhas cada mais difíceis e complexas. Contrariados com as próprias situações que criaram, abandonam os compromissos e fogem sistematicamente de si mesmos em novas quedas e agravamento de débitos.

Mas a própria vida se encarrega de reconduzi-los ao caminho, tirando-os dos desvios de suas rotas evolutivas. Alguns deles já começam a dar sinais de cansaço e já acenam para a busca de responsabilidades que antes nem imaginavam assumir. Outros persistem na indiferença ou infantilidade. Caminham espiritualmente em ritmos diferentes, mas, por atração espontânea, continuam ligados por laços aparentemente inexplicáveis. Quando encarnados, mal saem da infância e já se aproximam pelas circunstâncias cotidianas, pois, cada qual com suas condições sociais, voltam ao mesmos cenários físicos. Desencarnados, permanecem inquietos nos núcleos que os acolhem e não cessam as perturbações enquanto não se juntam para buscar respostas e curas para os males que juntos produziram. Os que avançaram um pouco mais, conquistam crédito em forma de recursos reencarnatórios, incluindo conhecimentos, porém se comprometem a auxiliar os que retardaram no caminho.

O cenário principal onde vêm se realizando essas experiências ora é o Rio de Janeiro , ora são os núcleos do mundo etéreo que orientam as coletividades que ali reencarnam como a eterna missão de ressurgirem espiritualmente. Nas últimas décadas do século que passou eles viveram situações de prova bastante dolorosas, proporcionais aos desvios de sua ações anteriores. Do antigo contraste entre a senzala e a casa senhorial eles saltaram para os conflitos violentos entre os bairros ricos e os morros pobres da moderna e perigosa sociedade urbana carioca. As mansões e suas futilidades; as favelas e suas necessidades. Aliás, foi no Rio de Janeiro que o termo favela adquiriu conceito de lugar, significado social e posteriormente virou sinônimo de território. A palavra é nome de uma planta rasteira trazida do sertão nordestino pelos soldados que participaram do massacre de Canudos e foram morar nas encostas dos morros. Com ela também veio a cobrança e os sucessivos acertos de contas entre vítimas e assassinos. Certamente aquelas milhares de almas que foram massacradas no famoso genocídio registrado por Euclides da Cunha foram atraídas para o Rio para acertar as contas com os seus antigos perseguidores. O Rio e suas classes dirigentes também tem graves compromissos coletivos assumidos com a nefasta instituição da escravidão africana. Em tempos mais remotos ainda, quando viviam na condição de abastados comerciantes fenícios, essas elites se habituaram a enriquecer às custas do sofrimento alheio, comercializando a carne e os destinos humanos. Muitos deles mais tarde se reuniram na península ibérica, sobretudo no litoral lusitano, onde deram continuidade às antigas inclinações marítimas.

Fernanda é um dos espíritos desse grupo. Dentre os seus antigos companheiros já vem diferenciando-se na progressão espiritual e, como foi dito, trabalha intensamente para vencer suas inclinações íntimas na prova da riqueza. Ao lutar contra suas limitações remete-se diretamente aos espíritos afins que ainda estão perdidos nas teias da ilusão. Essa reminiscência lhe causa um terrível sentimento de culpa e tristeza pela ausência e sofrimento dos companheiros queridos. Tem preferência especial por um deles, a quem se afeiçoou profundamente em várias existências. Trata-se de Rafael, espírito inteligente, ainda espiritualmente imaturo e inconseqüente. Os dois estão encarnados , porém em situações totalmente opostas. Queriam encarnar como futuros cônjuges, para constituir família e negócios, mas não lhes foi permitido tal desejo alegando-se que nas duas últimas existências haviam passado sucessivamente por essas experiências, abandonando os filhos e abusando dos recursos materiais recebidos. Para tentar novos rumos, Fernanda veio primeiro, uma década antes, em condições materiais mais confortáveis. Rafael não foi contemplado pela mesma “sorte”. Sofreria a prova do abandono e da miséria. Certamente se reencontrariam no momento e nas circunstâncias que a Providência Divina melhor julgasse apropriado. Nesse período de distância e isolamento, cultivariam um sentimento de intensa saudade e vazio, como preparação para preciosas horas de regeneração. As coisas não seriam nada fáceis para ambos. Ela sujeita aos perigosos riscos do tédio, da depressão e do suicídio. Ele provaria o completo abandono, a fome, a incerteza e a violência. Com eles também estariam – envolvidos em tramas complicadas- muitos outros antigos companheiros, também em posições opostas: policiais e bandidos, médicos e pacientes, patrões e empregados.

Essa trama existencial está em plena ocorrência. Fernanda já está completamnete envolvida. Não se recorda objetivamente de nada daquilo falamos e do qual teve participação consciente na elaboração do seu programa encarnatório. À vezes tem sonhos que lhe trazem algumas lembranças dessas reuniões de compromissos, mas ao acordar pensa que tudo não passou de fantasia ou recalques psicológicos. Ela é agora uma jovem carioca nascida no seio de uma família abastada, proprietária de uma grande rede imobiliária e comercial. Estudou em boas escolas, viajou para o exterior, conheceu os lugares mais visitados pelos turistas que anseiam conhecer o mundo. Tem inclinação especial para a arte, atividade que aprecia e consome, mas não pratica, apesar de ter sido iniciada de forma brilhante em música e algumas modalidades plásticas. No seu mundo social e círculo de amizades tudo o que podia ser feito ou experimentado já está registrado no seu antigo diário de experiências de menina, nas lembranças de moça e na memória de mulher. Para ela o tempo parece ter passado tão rápido que nem percebeu que as amizades se afastaram, tomando seus rumos na vida. As amigas de outras épocas a encontravam em inúmeras ocasiões e não compreendem por que ela anda sumida, não telefona, não se interessa pelas novidades que tomam conta da cidade e do mundo. Esses momentos, sempre entusiasmados e festivos, quase sempre acontecem no aeroporto, em restaurantes conhecidos e bem freqüentados ou então nos shoppings. Da última vez, por incrível coincidência, reencontrou esses amigos durante a demolição histórica do Muro de Berlim. Comemoraram, dançaram, tiraram fotografias e fizeram questão de guardar pedaços de concreto dos últimos vestígios do conhecido símbolo da Guerra Fria. Mas as despedidas são decepcionantes, depois das trocas de números de telefones e promessas de reencontros que nunca acontecem.

Linda e um tanto estranha para a maioria dos conhecidos, Fernanda Vieira de Souto continua a mesma de sempre para os amigos mais íntimos. Rica e nem um pouco esnobe. Sorridente, mas sempre com um olhar vago de quem , de repente, pode desmanchar-se em pranto. Suas antigas colegas de faculdade perseguiam os colunistas sociais na tentativa desesperada de aparecer nas famosas colunas de jornal ou nos comentários da televisão , mas eles queriam mesmo era saber dela, quem ela estava namorando, o que estava fazendo. Isso irritava as mais invejosas. Fernanda fugia, fugia, sempre fugindo dessas situações que considerava inúteis e ilusórias. O Rio das décadas de 1990 e 2000 foi tão marcante como foi e vem sendo para todas as gerações que ali são desafiadas pela existência. Para Fernanda, a imagem da Cidade Maravilhosa da sua infância e juventude também foi se desvanecendo com o passar dos anos. Tinha ouvido falar muito das décadas anteriores, do glamour aristocrático e da internacionalização do Rio, mas tudo não passava de nostalgia dos mais antigos. É apaixonada pela cidade, mas não era esse Rio de que tanto falam. Era um outro Rio de Janeiro, perdido na retina espiritual e que só conseguia recordar durante os sonhos em que se via rodeada de muitos amigos em meios a festejos noturnos, aventuras em locais ainda selvagens, ruas e bairros que hoje não existem mais. Do terraço da sua casa, que fica no alto de uma encosta, ela pode ver todos os dias a imensa Baía da Guanabara. Isso lhe causa ao mesmo tempo prazer e ansiedade. Não consegue olhar mais para o mar com a mesma admiração poética, nem apreciar a beleza das praias, dos calçadões, dos lugares típicos da paisagem que encanta e fascina há séculos os moradores e viajantes. Quando olha o azul do mar, volta-se automaticamente para a direção oposta e busca algo perdido nas velhas florestas. Em sucessivas noites de solidão, quando da janela do seu quarto pode apreciar o céu limpo ao redor, em plena zona sul, mira o Corcovado, o Cristo Redentor e o Pão de Açúcar, mas não resiste à tentação de perceber como os morros foram sendo tomados pelas favelas e como a zona norte, em sua extensa vastidão plana foi ocupada pelos casarios. As janelas e luzes acesas dos apartamentos despertam sua imaginação em tudo que poderia estar acontecendo naqueles lares. O mesmo acontece quando olha agora, na outra direção, as milhares de lâmpadas, cada vez mais fracas e a perder de vista, atestando que ali dormem milhares de famílias em busca de sonhos. Nesses instantes a solidão aumenta e ela então fica mais introspectiva. Procura ouvir chamamentos, gritos, alguém clamando pela sua presença, pedindo sua ajuda. Algumas vezes chega a pensar que está ficando louca, que não fez as coisas que deveria ter feito no tempo certo para as moças da sua idade e da sua classe social. Namorou mas não se apaixonou de forma significativa a ponto de se casar. Não se via como dona de casa, pois havia estudado para ser executiva de negócios, mas também não sentiu a necessidade de ser mãe, como já havia acontecido com algumas amigas. Rompeu relações amorosas consideradas imperdíveis e altamente cobiçadas no seu círculo social simplesmente porque não via nisso nenhum tipo de valor significativo como modo de vida e felicidade. Dentro de si existe um vácuo, algo profundo e não preenchido nesses anos todos de estudos e conforto material. Teve amor e carinho da família, e sabe corresponder tudo isso, mas parece deslocada no tempo e consequentemente na esfera de interesses dos parentes sanguíneos. Não os contraria, mas também não os surpreendem com alguma inovação e sucesso, como é comum na sua cultura. A Fernanda linda da infância, enigmática da adolescência e misteriosa da juventude adulta continuava a semear dúvidas e perturbar a imaginação de vizinhos, admiradores, amigos e familiares. O que pretende ela nessa altura da vida? Está solitária, mas ao mesmo tempo possui um carisma natural para atrair os outros para a sua esfera pessoal. Não busca ninguém deliberadamente, mas está sempre sendo solicitada por alguém que conhece suas qualidades para resolver situações difíceis e complicadas. Apesar de só, é uma pessoas agradável, sempre afetuosa, às vezes intolerante com os erros alheios, mas sempre de forma educada e aberta. Esse é o segredo de sentir-se só, mas nunca estar isolada. Sua inteligência é um ponto forte de magnetismo humano. Fernanda vive cada vez mais em si mesma, não para si, mas para os outros. É a solidão dos iniciados, que brigam com o mundo, choram pelos cantos e sorriem alegremente para todos.

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