domingo, 28 de junho de 2009

Reencontro


Este é o mundo de Fernanda. Um mundo não muito distante do mundo em que agora vive Rafael, a sua alma gêmea, da qual não se lembra com a memória da existência atual, mas que permanece gravada na lembrança mais profunda do seu Espírito imortal.

Rafael tem a mesma sensação e, como ela, não sabe qual é o sentido verdadeiro de sua vida. Eles andam pelas ruas do Rio com a nítida impressão que vão encontrar alguém que conhecem e que ainda não voltaram de uma viagem ou coisa parecida. O mundo de Rafael, com vimos, é o lado obscuro da cidade. Para os olhos comuns ele nasceu em circunstâncias que só podem ser explicadas pelo determinismo biológico e social. É que se chama de má sorte. A mãe de Rafael cresceu nos morros e, como ele hoje, vivia nas ruas onde aprendeu tudo de ruim. Ela se separou do menino quando este tinha apenas três meses. Rafael foi levado por um traficante para quem ela devia dinheiro e , desde aquele dia, nunca mais viu a criança, sendo expulsa violentamente da favela controlada pelo marginal. Mais tarde soube que o traficante havia sido morto e voltou ao morro para tentar recuperar o filho. Rafael já estava com sete anos de idade e agora fazia parte de uma turma de crianças que vivem errantes pelas ruas do centro da cidade. Famintos do corpo e sedentos de amor, preenchem essas carências com pequenos roubos, cheirando cola de sapateiro, brincando até altas horas da madrugada até que o sono os abatem e o fazem esquecer por algumas horas aquela situação de dor e miséria. Estão adaptados, mas não satisfeitos. Rafael está entre eles, mas não se sente um deles. Está agora com 12 anos mais ainda não sabe exatamente o que aconteceu com ele nos últimos anos e como foi parar nas ruas. Não tem noção do que seja uma família, do que é afeto ou o que seja um lar. Ultimamente a turminha, que antes se escondia sob um viaduto e de lá foram expulsos por invasores, dorme sob uma parte coberta de um prédio comercial. Dormem tarde e tem que levantar logo que as portas das lojas começam a ser abertas. Os comerciantes não gostam de vê-los por ali, pois sabem que os fregueses serão certamente incomodados ou assaltados por eles. Rafael tem estado meio inquieto e apreensivo. É o mais velho da turma e atua como condutor dos menores, por quem demonstra afeto e proteção.

Nas madrugadas tem aparecido uma Combi com um motorista alto e forte e uma moça muito simpática. Eles trazem sopa num enorme caldeirão para alimentar as crianças. De vez em quando trazem roupas usadas e cobertores, que logo desaparecem, por não ter onde guardar durante o dia. Rafael é apaixonado pela estátua do Cristo Redentor e vive falando de uma luz diferente que aparece sobre a cabeça do Cristo e que acredita ser aviso de uma alguma coisa importante que vai acontecer. Os meninos riem quando ele conta essa história maluca e dizem que é efeito da cola de sapateiro. Ele também sempre fala disso para a moça da Combi e ela o escuta com atenção e diz acreditar nele. Já quase saindo, ela pede para ele ficar sempre de olho nos menores, principalmente num pequenino que é sonâmbulo e sempre vai em direção da avenida. Ele promete que vai ficar vigiando. A moça e o motorista vão embora e tudo recomeça no outro dia. O motorista se dirige para um bairro próximo a Botafogo. Vão conversando sobre os planos de levar as crianças para um lugar mais seguro, onde irão construir uma escola profissionalizante, alojamentos confortáveis, parques com brinquedos e muitas outras coisas. Conversam sempre sobre esses planos até que se lembram que as crianças se recusam a ficar em qualquer lugar que não se já rua. Gostariam de ir para uma casa, serem adotados para uma família. Mas já estão grandes demais. A rua tem mais liberdade. Ela já pensou em levar o Rafael para casa e adotá-lo, mas ele age com indiferença e desinteresse quando ela toca no assunto. Volta sempre a falar na luz do Cristo Redentor. Então ela desiste e recomenda que ele cuide dos menores.

A Combi para na frente de um enorme casa construída num condomínio fechado. As luzes ainda estão acesas. Ela se despede do motorista e o avisa que para não esquecer o recado para a Rita, a cozinheira, de comprar os legumes da sopa da próxima noite. Ela trabalha na casa e faz a sopa todas as tardes, depois que termina o serviço diário, antes de ir embora. A moça da Combi é da filha da sua patroa e sempre a convida para ajudar na distribuição da sopa. Rita sempre arruma uma desculpa para recusar o convite e diz que por enquanto só quer fazer a sopa. Rita é crente e mora na zona norte da cidade. Fala pouco de sua vida mas, quando fala, nunca deixa de falar que é uma nova pessoa, que encontrou Jesus e deixou muitas desgraças para trás. Vai aos cultos quase todas as noites e ora pedindo a Deus para reencontrar o filho que desapareceu quando ainda estava amamentando. Rita é uma mulher muito triste, sofrida, mas está confiante na nova fé. Já procurou o filho pelas ruas, mas nunca teve nenhum sinal confiável de que Rafael ainda estivesse vivo. Sua patroa é a mãe de Fernanda Vieira de Souto. Toda aquela angústia e vazio que Fernanda vinha sentindo está desaparecendo aos poucos. Ao passar pelas ruas do centro, a moça começou a prestar mais atenção em todas aquelas crianças famintas e maltrapilhas pedindo esmolas ou dormindo ao relento. Decidiu fazer alguma coisa e convidou um amigo para ajudá-la nessa aventura. Ele é Ricardo, um arquiteto bem conceituado, companheiro de Fernanda desde a infância. Compraram juntos a Combi, fizeram todos aqueles planos, mas continuam somente com a sopa. Ambos estão muito felizes, apesar do impasse na execução das outras idéias. Outros colegas também participam dessas e outras incursões de caridade, como anjos da noite, mas logo se cansam e afastam-se. Fernanda e Ricardo permanecem firmes. Quase desistiram da sopa quando tentaram levar as crianças para um lugar fixo, mas foram convencidos pela própria Rita a continuar já que ela estava bastante entusiasmada com aquele trabalho. Ela até prometeu que iria se esforçar para ir junto com eles, embora tivesse medo. Numa dessas tardes em que Rita preparava a sopa Fernanda percebeu algo diferente na cozinha. Sentiu um cheiro totalmente diferente e foi perguntar para Rita se ela havia acrescentado algum tempero diferente. Rita estava sorridente com o rosto iluminado, radiante. Fernanda ligou para Ricardo e contou-lhe o que estava acontecendo. Quando chegou, Ricardo percebeu que algo estranho estava para acontecer e quis somente acreditar que Rita somente havia colocado mais amor no tempero. Mas perdeu a chance de convencê-la a ir com eles. Hoje não tinha como se desculpar. A sopa estava deliciosa, especial. As crianças sempre perguntavam quem fazia aquela sopa e queriam conhecer essa cozinheira. Na verdade, quem sempre perguntava era o Rafael e o outros passaram a imitá-lo dizendo que queriam conhecer Rita. Os olhos dela brilharam quando finalmente aceitara o convite. Naquela noite nem voltaria para casa.

E foram os três, e com eles uma verdadeira legião de entidades luminosas, como numa caravana festiva. A medida que se aproximava do local o coração de Rita ficava cada vez mais apertado e apreensivo. A Combi estacionou em frente a uma calçada enorme. Eram 1:30 h. Ao perceber a movimentação, Rafael pôs-se em pé e foi logo acordando os menores que já dormiam há algumas horas. Rafael também estava apreensivo. Havia se deitado para acalmar os coleguinhas, mas não conseguia tirar os olhos do Corcovado. Sentia que naquela noite a luz azulada do Cristo voltaria a brilhar com muito mais força. Rafael viu a mesma luz envolvendo a Combi e, num rápido lance de olhar percebeu que havia muitas pessoas em torno do caldeirão de sopa. Elas estavam de mãos dadas e cantavam enquanto olhavam em direção ao Cristo. Rita estava em prantos e, tomada por um força estranha , desceu do veículo e foi na direção de Rafael que já a esperava de braços abertos. Nem tiveram tempo de se olharem para se envolver num forte abraço repleto de amor e saudades. Choraram em soluços até que perceberam que Fernanda e Ricardo também estavam abraçados com as crianças, todos chorando e muito emocionados com aquele reencontro. Ali não estavam somente os quatro, mas muitos dos antigos colegas de outros tempos passando pela mesma prova. As entidades eram também amigos de outras épocas, acompanhadas dos espíritos mentores das crianças. Eles também choravam de júbilo e oravam em agradecimento a Jesus por aquele momento tão significativo em suas vidas. Era um reencontro de resgate e também de ressurreição. Ao contrário de Rafael e Rita, para os demais as provas não acabaram naqueles instante. Teriam que trilhar ainda um caminho de dores mais profundas. Para alguns, ainda estava para vir a etapa mais sofrida resgate, no qual seriam eliminados num trágico acontecimento que ganharia notoriedade na imprensa mundial.

Mas o Cristo Redentor continua lá, atento a todos os acontecimentos. Para quem tem olhos de ver, sua luz estará sempre brilhante nas noites mais escuras e seu braços estarão sempre abertos nos momentos de aflição.

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