sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A lembrança de Olavo (Conto)

Os fuzilamentos de três de Maio, por Francisco de Goya



Ele não lembrava direito quem tivera a idéia de fazer uma parada naquela estrada para fazer um lanche. Todos concordaram porque o lugar parecia agradável, um pouco afastado da margem. O quiosque que servia de abrigo era bem grande e dava para acomodar a todos. Era uma antiga barraca de água de coco com mesas grandes e rústicas. Ele era Olavo, o mais velho da turma de quatro amigos. Não faria a mínima diferença saber de quem tinha sido a idéia da parada. Só iria piorar as coisas se houvesse uma discussão com acusações entre eles. Olavo só não se perdoava por ter deixado as coisas terem chegado naquele ponto. Poderia ter tomado uma atitude logo no início, mas preferiu aguardar o momento mais seguro. Está arrependido porque , para ele, a melhor oportunidade já havia passado. Agora, somente uma ação muito arriscada poderia reverter a situação em que todos estavam em perigo, principalmente as crianças.

Olavo estava como muito medo e desde os primeiros preparativos para essa viagem pressentiu algo de ruim. Um frio na barriga o incomodava desde o início da semana. Tentou desistir, mas as mulheres e os filhos já estavam praticamente certos da viagem e muito entusiasmados. Era a primeira vez que os quatro amigos levariam as esposas e filhos. Isso só acontecia quando iam para a praia. Dessa vez decidiram levá-los para o Pantanal, onde alugariam um barco de pesca pelo período de uma semana. Nunca fizeram paradas imprevistas como essa e sempre buscavam os conhecidos postos de serviços. Dessa vez, logo dessa vez, tudo deu errado. Tinha que manter a calma. Tinha, sobretudo, que ficar de olho no Ivinho, o mais impulsivo e que poderia estragar tudo e colocar todos em risco. Paulo Henrique também era explosivo, valente, mas era mais inteligente do que Ivinho. Rachel, a mulher de Ricardo estava surpreendentemente calma, demonstrando tranquilidade e confiança de que as coisas iriam dar tudo certo. Olhava para as crianças e tentava fazer com que as amigas também agissem da mesma forma, sem demonstrar desespero. Olavo estava com um temor que jamais sentira exatamente porque tivera maus pressentimentos. Estava armado, coisa que nunca o havia acontecido ou lhe interessado. Havia tomado a arma emprestada de um colega da empresa, o mesmo que criticara por ter feito um curso de tiro e defesa pessoal. Ficou envergonhado por ter tido vontade pedir a arma , mas justificou da melhor forma possível. O colega o treinou rapidamente ensinando a lidar com o carregamento das munições e até ensaios alguns disparos , aprendendo como agir rapidamente em caso de assalto. “Que loucura...” , pensava ao recordar que jamais concordaria em usar uma arma para atirar em alguém.

Ricardo estava assustado e seus olhos percorriam a tudo e a todos que ali estavam . Isso deixava Olavo mais preocupado com o desfecho daquela situação.

Paulo Henrique parecia abalado com tudo que havia acontecido sem, no entanto, revelar medo. Se um deles tivesse que tomar uma atitude mais atrevida este seria Paulo Henrique. Era o mais inteligente do grupo, sabia negociar, tinha grande poder de convencimento e já poderia ter feito alguma proposta atraente para resolver aquela situação. “Se ele ainda não fez nada é sinal que as coisas realmente não estão indo muito bem”, pensou Olavo. Conversar o quê? Fazer que tipo de proposta? Como convencer alguém que se mostra tão insensível e ao mesmo ameaçado, continuava pensando Olavo enquanto os outros dois amigos pareciam também aguardar a decisão.

Das mulheres somente Rachel estavam procurando se inteirar do que estava acontecendo e do que poderia acontecer caso houvesse uma reação dos homens. As demais estavam somente assustadas e aguardando o momento pior no qual poderiam chorar e implorar pelas suas vidas e dos seus filhos. Ela estava um pouco distante deles e, de repente decidiu agir e comunicar-se através dos olhos. Queria saber o que poderia ser feito. As crianças já estavam a ponto de explodir e não suportariam mais. Tinha medo de que as coisas descambassem já nos próximos minutos e rompeu aquele silêncio de indecisão entre o marido os três amigos. Olhou para Ricardo, cobrando uma posição. Ricardo olhou para Paulo Henrique e também para Ivinho e todos se voltaram para Olavo, com o se o mesmo tivesse naquele instante sido escolhido para iniciar a reação. Todos estavam se sentindo acuados e conscientes de que aquela decisão iria mudar completamente o rumo de suas vidas. Nem todos iriam sobreviver e as crianças certamente seriam sacrificadas. Por outro lado não havia garantia nenhuma de que elas estariam em segurança caso permanecessem passivos. Era tudo ou nada. Ou pelo menos a esperança de que alguém poderia sair dali vivo.

Por alguns instantes Olavo recuperou a frieza e iniciou uma leitura ainda mais rápida da situação, tentando entender como tudo havia começado. Primeiramente contou quantos eram aqueles que ameaçavam suas vidas. Era oito, seis rapazes e duas adolescentes, todos de mal aspecto, vestindo roupas muito sujas, com manchas pretas parecendo serem cortadores de cana que voltavam das lavouras que ocupavam toda aquela vasta região. Tinham surgido na margem da estrada e de longe escutava-se uma intensa conversação entre eles. Embora tenham ficado atentos, não se preocuparam, pois viram que eram lavradores, pessoas simples que jamais poderiam causar algum tipo de problema. Na medida que se aproximavam, a conversação mais parecia uma algazarra e até mesmo brigas entre eles. Foi então que perceberam que não eram pessoas adultas e sim jovens completamente sem modos, sem a simplicidade e a timidez dos lavradores que conheciam e que até haviam conversado em algumas ocasiões. Esses tinham um jeito diferente, um olhar vago, perdido, que lembrava uma certa perturbação. Estavam visivelmente alcoolizados ou drogados e isso os tornava mais assustadores. Dois deles revelavam intenções de maldade e pareciam ter poder sobre os demais. Trocaram olhares entre si e partiram em direção aos carros que estavam estacionados sob algumas árvores. Foi então que Olavo percebeu o perigo e avisou os colegas. Mas já era tarde. Todos foram dominados pelos jovens, que empunhavam longos facões. Cercados e tomados de surpresa as mulheres e crianças começaram a gritar e isso fez com os jovens andarilhos demonstrassem mais agressividade e exigissem silêncio de todos.

Enquanto pensava e contava quantos eram os marginais que os haviam feito reféns , Olavo também tentava equacionar quem eles eram. Que tipo pessoas eram aquelas que de longe pareciam ser simples lavradores e que de perto revelaram-se seres perigosos e cheios de ódio no coração. O que estava acontecendo? Aquele passeio, que seria um dos mais divertidos em todos aqueles anos de amizade, desfizera-se num pesadelo e numa possível cena de horror. Com exceção de duas esposas, todos se conheciam desde a infância, cresceram no mesmo bairro, estudaram na mesma escola e sempre procuravam estar juntos. O feriado prolongado da Semana da Pátria prometia um fim-de-semana alegre agora jamais seria esquecido pela aquela turma de amigos. A viagem tinha sido planejada no inicio do ano, quando o mesmo grupo aproveitava as últimas horas da temporada de verão na praia.

Olavo foi tomado então por uma sensação muito estranha. Queria falar, mas sua voz não saia, enquanto era gravemente observado por alguns daqueles marginais. Tinha a nítida sensação de que as coisas não iriam ser boas e já se preparava para o pior. Olhou para os colegas e gesticulou intuitivamente para que todos tivessem calma. Na verdade queria dizer-lhe que tivessem confiança. Queria dizer-lhes que não perdessem a fé em Deus , mas a voz parecia estar mais presa no peito aumentando sua angústia. Seus olhos encheram de lágrimas ao ver as crianças naquela expectativa angustiante. Olhava para cada uma delas e pensava “Deus”, “Confiança”, “Fé”, como se quisesse enviar-lhes esses pensamentos de força. Lembrou que essas palavras foram repetidas várias vezes pelo preletor do centro espírita no qual tinha ido tomar passes há mais de um ano, a convite da copeira da sua empresa e que sempre deixada sobre a sua mesa um folhetinho com mensagens que nunca tinha tempo de ler. Não recordava o rosto do preletor, mas não esqueceu que ele sempre sorria e repetia aquelas palavras, para ele soltas em frases incompreensíveis: “”Deus”, “Confiança” e “Fé”.

Antes de ter a sensação de que iria desmaiar, Olavo desfechou aquele que acreditava ser o último olhar para o seu amigo Paulo Henrique e abriu os braços pedindo a ele que corresse em sua direção. Paulo obedeceu e partiu para socorrer o amigo que lhe parecia estar tendo um colapso. Abraçou-o e sentiu que Olavo tinha algo escondido sob a camiseta. Apalpou e pegou a arma que lhe pareceu muito pesada e estranha. Voltou-se rapidamente e deu um tiro para o alto, enquanto gritava raivosamente para que os jovens se afastassem. Não podia vacilar e foi incisivo na segunda ordem, aproximando-se dos dois marginais que pareceriam ser os mais atrevidos. Olavo já estava no chão sendo socorrido pela esposa e Raquel se encarregou de motivar os outros a assumir a atitude de enfrentar os inimigos. Mas Paulo Henrique parecia estar tomado por uma grande força vingativa e fez com os jovens fossem rapidamente dominados, levando-os sob ameaça em direção ao canavial. Eles entenderam que agora estavam em desvantagem seguiram caminhando rapidamente com as mãos sobre as cabeças. A certa altura Paulo fez com que todos se deitassem de bruços. Estava ali com todos eles, dominados. Ricardo e Ivinho já estavam ao seu lado e o três passaram a compartilhar os mesmos sentimentos de ódio e vingança. “É preciso fazer justiça”, falava Ivinho. Tomando pela mesma sensação, Ricardo segurava nas mãos um dos facões tomados dos jovens e intimidava Paulo Henrique: "Vai, cára, eles iam matar todos nós. Se você não fizer isso agora eles vão fazer isso com outras pessoas e , quem sabe, com a gente mesmo. Se você não fizer , faço eu mesmo!"

Paulo já estava convencido e já havia tomado a decisão de atirar nos jovens. Não havia outro jeito de terminar aquela história de covardia e terror a que foram submetidos. Um dos jovens já tinha sido ferido por um golpe de Ricardo quando tentou correr para dentro do canavial. Paulo apontou a arma e disparou o primeiro tiro. Foi um barulho ensurdecedor, que ecoou fortemente pelo ar. Os jovens então ficaram inquietos e alguns deles entraram em desespero clamando pelo amor de Deus. Paulo já ia disparar o segundo quando ouviu a voz de Olavo dizendo: “Paulo, Paulo! Eu acabo de ver tudo. Eles já nos mataram uma vez, lembra? Atiram em nós dizendo que daquela vez finalmente iriam nos mandar para o inferno! Estávamos todos, Ricardo e Ivinho também, encostados num muro muito alto, cantando o nosso hino. Era o muro de um grande cemitério. Antes de atirarem em nós um velho padre tentava nos consolar dizendo “Crêem em Deus!” “Tenham confiança em Nosso Senhor e não percam nunca a esperança, pois uma dia todos iremos morrer e ressurgir para a eternidade!”. O padre também voltou!

A mão de Paulo ainda estava tremendo quando já podia-se ouvir o alarde de várias sirenes de carros da polícia se aproximando.

A pescaria tinha sido finalmente adiada. Paulo, ainda perturbado, pouco antes de dormir confessou para a esposa que naquela semana tivera um sonho. Durante uma pesca ele jogava uma grande rede no rio e ao puxar ficava desesperado ao ver que nela não tinha peixes e sim vários jovens agonizando. Gritava para os colegas Ivinho, Ricardo e Paulo Henrique , mas somente Paulo o atendia e ajudava-o a tirar os jovens da rede.

A vida segue normal. Os quatro continuam muito amigos. De vez em quando Olavo visita a região, talvez para superar um trauma que se instalou na sua alma. Mais tarde descobriu que era apenas uma cobrança da consciência. Quis saber quem eram os jovens daquele dia. Visitou anonimamente alguns onde estavam detidos e depois até teve coragem de conversar com aquele que era o mais agressivo. Todos o olhavam com desconfiança. Olavo sentia necessidade de dizer-lhes que não tinha raiva de nenhuma deles e que, na verdade queria se desculpar se alguma vez lhes fizera algum mal. Eles não entendiam muito bem o que Olavo dizia e só mudavam o semblante quando ele dizia que sempre orava por todos e que um dia todos iriam ser amigos. Voltou lá várias vezes e sempre levava roupas, tênis, livros. Conheceu também as duas jovens. Uma delas já era mãe e recebeu Olavo com sincera alegria. A outra era mais rebelde, mas foi mudando aos poucos quando percebeu que Olavo só queria ajudar. Depois que os jovens saíram da detenção Olavo nunca mais os viu. Mais ainda faz oração por eles todos os dias antes de deitar-se.

Olavo sempre vai centro espírita assistir a preleção das segundas-feiras. Ao seu lado está Paulo Henrique. Quando o preletor começa a falar, Olavo vira-se para Paulo e diz: “Olha lá o nosso padre! Lembra?


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