sábado, 16 de fevereiro de 2008

O Bom Ladrão






Machado, a Livraria Granier, Joaquim Carlos Travassos e imagens da antiga e atual rua do Ouvidor, gazeteiros no Rio , por Marc Ferrez, e fax-símile do Jornal do Commércio.




“Quem a vê agora, fechadas as portas, trancados os mostradores, à espera da justiça, do inventário e dos herdeiros, há de sentir que falta alguma coisa à rua. Com efeito, falta uma grande parte dela, e bem pode ser que não volte, se a casa não conservar a mesma tradição e o mesmo espírito”.



GARNIER, por Machado de Assis


Segunda-feira desta semana, o livreiro Garnier saiu pela primeira vez de casa para ir a outra parte que não a livraria. Revertere ad locum tuum - está escrito no alto da porta do cemitério de São João Batista. Não, murmurou ele talvez dentro do caixão mortuário, quando percebeu para onde o iam conduzindo, não é este o meu lugar; o meu lugar é na rua do Ouvidor 71, ao pé de uma carteira de trabalho, ao fundo, à esquerda; é ali que estão os meus livros, a minha correspondência, as minhas notas, toda a minha escrituração.

Durante meio século, Garnier não fez outra coisa, senão estar ali, naquele mesmo lugar, trabalhando. Já enfermo desde alguns anos, com a morte no peito, descia todos os dias de Santa Teresa para a loja, de onde regressava antes de cair a noite. Uma tarde, ao encontrá-lo na rua, quando se recolhia, andando vagaroso, com os seus pés direitos, metido em um sobretudo, perguntei-lhe por que não descansava algum tempo. Respondeu-me com outra pergunta: Pourriez-vous résister, si vous étiez forcé de ne plus faire ce que vous auriez fait pendant cinquante ans? Na véspera da morte, se estou bem informado, achando-se de pé, ainda planejou descer na manhã seguinte, para dar uma vista de olhos à livraria.

Essa livraria é uma das últimas casas da rua do Ouvidor; falo de uma rua anterior e acabada. Não cito os nomes das que se foram, porque não as conheceríeis, vós que sois mais rapazes que eu, e abristes os olhos em uma rua animada e populosa onde se vendem, ao par de belas jóias, excelentes queijos. Uma das últimas figuras desaparecidas foi o Bernardo, o perpétuo Bernardo, cujo nome achei ligado aos charutos do Duque de Caxias, que tinha fama de os fumar únicos, os quase únicos. Há casas como a Laemmert e o Jornal do Comércio, que ficaram e prosperaram, embora os fundadores se fossem; a maior parte, porém, desfizeram-se com os donos.

Garnier é das figuras derradeiras. Não aparecia muito; durante os 20 anos das nossas relações, conheci-o sempre no mesmo lugar, ao fundo da livraria, que a princípio era em outra casa, n.º 69, abaixo da rua Nova. Não pude conhecê-lo na da Quitanda, onde se estabeleceu primeiro. A carteira é que pode ser a mesma, como o banco alto onde ele repousava, às vezes, de estar em pé. Aí vivia sempre, pena na mão, diante de um grande livro, notas soltas, cartas que assinava ou lia. Com o gesto obsequioso, a fala lenta, os olhos mansos, atendia a toda gente. Gostava de conversar o seu pouco. Neste caso, quando a pessoa amiga chegava, se não era dia de mala, ou se o trabalho ia adiantado e não era urgente, tirava logo os óculos, deixando ver no centro do nariz uma depressão do longo uso deles. Depois vinham duas cadeiras. Pouco sabia da política da terra, acompanhava a de França, mas só o ouvi falar com interesse por ocasião da guerra de 1870. O francês sentiu-se francês. Não sei se tinha partido; presumo que haveria trazido da pátria, quando aqui aportou, as simpatias da classe média para com a monarquia orleanista. Não gostava do império napoleônico. Aceitou a república, e era grande admirador de Gambetta.

Daquelas conversações tranqüilas, algumas longas, estão mortos quase todos os interlocutores, Liais, Fernandes Pinheiro, Macedo, Joaquim Norberto, José de Alencar, para só indicar estes. De resto, a livraria era um ponto de conversação e de encontro. Pouco me dei com Macedo, o mais popular dos nossos autores, pela Moreninha e pelo Fantasma Branco, romance e comédia que fizeram as delícias de uma geração inteira. Com José de Alencar foi diferente; ali travamos as nossas relações literárias. Sentados os dois, em frente à rua, quantas vezes tratamos daqueles negócios de arte e poesia, de estilo e imaginação, que valem todas as canseiras deste mundo. Muitos outros iam ao mesmo ponto de palestra. Não os cito, porque teria de nomear um cemitério, e os cemitérios são tristes, não em si mesmos, ao contrário. Quando outro dia fui a enterrar o nosso velho livreiro, vi entrar no de São João Batista, já acabada a cerimônia e o trabalho, um bando de crianças que iam divertir-se. Iam alegres, como quem não pisa memórias nem saudades. As figuras sepulcrais eram, para elas, lindas bonecas de pedra; todos esses mármores faziam um mundo único, sem embargo das suas flores mofinas, ou por elas mesmas, tal é a visão dos primeiros anos. Não citemos nomes.

Nem mortos, nem vivos. Vivos há-os ainda, e dos bons, que alguma coisa se lembrarão daquela casa e do homem que a fez e perfez. Editar obras jurídicas ou escolares, não é mui difícil; a necessidade é grande, a procura certa. Garnier, que fez custosas edições dessas, foi também editor de obras literárias, o primeiro e o maior de todos. Os seus catálogos estão cheios dos nomes principais, entre os nossos homens de letras. Macedo e Alencar, que eram os mais fecundos, sem igualdade de mérito, Bernardo Guimarães, que também produziu muito nos seus últimos anos, figuram ao pé de outros, que entraram já consagrados, ou acharam naquela casa a porta da publicidade e o caminho da reputação.

Não é mister lembrar o que era essa livraria tão copiosa e tão variada, em que havia tudo, desde a teologia até à novela, o livro clássico, a composição recente, a ciência e a imaginação, a moral e a técnica. Já a achei feita; mas vi-a crescer ainda mais, por longos anos. Quem a vê agora, fechadas as portas, trancados os mostradores, à espera da justiça, do inventário e dos herdeiros, há de sentir que falta alguma coisa à rua. Com efeito, falta uma grande parte dela, e bem pode ser que não volte, se a casa não conservar a mesma tradição e o mesmo espírito.

Pessoalmente, que proveito deram a esse homem as suas labutações? O gosto do trabalho, um gosto que se transformou em pena, porque no dia em que devera libertar-se dele, não pôde mais; o instrumento da riqueza era também o do castigo. Esta é uma das misericórdias da Divina Natureza. Não importa: laboremus. Valha sequer a memória, ainda que perdida nas páginas dos dicionários biográficos. Perdure a notícia, ao menos, de alguém que neste país novo ocupou a vida inteira em criar uma indústria liberal, ganhar alguns milhares de contos de réis, para ir afinal dormir em sete palmos de uma sepultura perpétua. Perpétua!



Machado de Assis, outubro de 1893 in A Semana, Gazeta de Notícias
- W. M. Jackson Inc. – 1946. Ortografia Atualizada.



Baptiste Louis GARNIER e o Espiritismo


“O Espiritismo chegou ao Brasil pelas mãos dos jovens “doutores” brasileiros, que iam estudar na Europa, geralmente em Paris, e o domínio do francês era praticamente obrigatório para o exercício profissional dos seus títulos. Muitos franceses que residiam no Brasil também contribuíram com essa propagação. É o caso de Alexander Canu, que traduziu e publicou por conta própria O Espiritismo em sua expressão mais simples; e do educador Cassimir Lieutaud, que em 1860 publicou no Rio de Janeiro o livro Les temps sons arrivés (Os tempos são chegados), de temática essencialmente Espírita. Materialista convertido, Alex Canu era um ex-colono do Saí e Lieutaud era diretor de uma das mais conceituadas escolas particulares do Rio, arriscando sua posição social assumindo publicamente o Espiritismo. Membro de destaque do fechado grupo da colônia francesa, era freqüentador da redação do Courrier du Brésil, ponto de encontro de exilados e opositores do regime de Napoleão III e também de intelectuais fascinados pelo Velho Continente ou em busca de um “branqueamento” cultural europeu, incluindo Machado de Assis. Para o autor de Os Intelectuais e o Espiritismo, Cassimir Lieutaud, Adolph Hubert, Morin e a médium psicógrafa Madame Perret Coulard são “...os verdadeiros introdutores da doutrina de Kardec no Brasil”:

“Naquela roda de homens pragmáticos e de sonhadores, a doutrina espírita encontrou imediata receptividade. O Espiritismo não surgia apenas como uma nova opção mística, uma brecha para se entrever os arcanos misteriosos da morte: vinha, também, enlaçado às mais modernas tendências liberais. Em particular, ao socialismo. As teorias de Charles Fourrier e Pierre Leroux, prematuras no tempo de marica, encontravam receptividade entre muitos românticos brasileiros. O prestígio do segundo, sobretudo, que procurava explicar as desigualdades sociais através da pluralidade das existências, já vinha da França, aureolada pela admiração que lhe devotava George Sand. Os franceses do Brasil, que conheciam aquelas teorias, se entusiasmaram quando viram encaixadas no corpo de uma doutrina mística. Graças a esses elos de simpatia entre Espiritismo e idéias socialistas, o Courrier se tornou o primeiro ninho, em nosso país, onde se acomodaram as crenças espíritas. Em 1861, Adolph Hubert, editor do jornal, admitia sua condição de espírita: um espírita cauteloso, cartesianamente sem fanatismos.”

As primeiras obras de Allan Kardec editadas no Brasil, já na década de 1870, foram publicadas por B. L. Garnier, irmão dos famosos editores que possuíam negócios gráficos em Paris. Inicialmente as edições eram impressas na Tipografia Charles Barry, mas na França trabalhavam com os Garnier operários portugueses e brasileiros que poderiam facilitar a revisão das encomendas editoriais do Brasil. Desde 1846 ele era o editor das mais famosas publicações oferecidas na Corte: os melhores romances europeus, a Biblioteca Universal, a Revista Popular e depois o Jornal das Famílias. Este último tinha como colaboradores grandes nomes da literatura como Machado de Assis, o historiador português Alexandre Herculano e o diplomata e historiador Francisco Adolfo Varnhagen. Segundo Frédéric Mauro , B. L. Garnier era apelidado pelos escritores de “O Bom Ladrão”, brincadeira que significava ser ele um editor que cumpria suas promessas, apesar da pouca remuneração. Garnier chegou ao Brasil no dia 24 de Julho de 1844 e faleceu no Rio no final do século XIX. Sua coragem, combinada com ousadia comercial em publicar O Livro dos Espíritos, lhe custou pesadas críticas e também muita publicidade gratuita, proporcionada por cronistas incipientes que ainda desconheciam os efeitos imprevisíveis da comunicação de massa. A edição feita em 1875 foi traduzida por Joaquim Carlos Travassos, sob o pseudônimo “Fortúnio”, provavelmente por influência de Lieutaud – amigo íntimo do editor – bem como de Antonio Silva Neto e Bittencourt Sampaio, que possuíam livros editados por Garnier. Para garantir o mesmo sucesso alcançado em Paris, anunciou-se no Jornal do Commércio, no dia 14 de janeiro de 1875, o mesmo texto promocional redigido 18 anos antes pelo jornalista francês G. du Chalard, publicado no Courrier de Paris. A matéria era ao mesmo tempo cautelosa e sedutora, simpática e aparentemente neutra, modelo que não deveria ser desprezado numa sociedade tão reacionária quanto a nossa, tal qual a francesa: muito católica, mística e em busca da glória nacional.

“Imprensa – Publicou-se, traduzido por Fortunio, O Livro dos Espíritos ou Philosofia Espiritualista, de Allan Kardec, que, aliás, protesta não ser mais do que o compilador das doutrinas que lhe ensinaram os espíritos sobre a imortalidade da alma, a natureza dos mesmos espíritos e suas relações com os homens, as leis morais, a vida presentes e a futura e o porvir da humanidade (...)”


– Dalmo Duque dos Santos Nova História do Espiritismo – Dos precursores de Allan Kardec a Chico Xavier – Editora Corifeu, Rio de Janeiro, 2007.

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