A crônica escrita por Edgard Armond (do livro Relembrando o Passado), tinha como intenção primordial chamar a atenção do leitor sobre a gravidade dos sentimentos de ódio e vingança, bem como a grandeza do gesto doperdão.Ao relembrar o fato que o motivou escrever sobre assunto, ele cita o conhecido trecho evangélicosobre reconciliação com os inimigos e que surgira “espontaneamente” como leitura da reunião mediúnica daquela noite. Armond não revela a identidade dos personagens do caso (por ser amigo pessoal de um dos envolvidos), mas deixa pistas que levam qualquer leitor mais curioso a fazer especulações, como essas que aqui fazemos agora.
Na referida reunião mediúnica “...deu-se a incorporação de um Espírito de nome muito conhecido das letras nacionais e que teve morte trágica”, que veio solicitar ajuda para uma tentativa de reconciliação com aquele que o havia alvejado a tiros e provocado a sua desencarnação. Queria alertá-lo para essa grande oportunidade espiritual, já que sua morte também estava próxima. Armond seria o intermediário da proposta para que os dois conversassem fraternalmente, pela via mediúnica. O encontro não aconteceu, pois a parte encarnada, embora reconhecendo o esforço do amigo, evitou de todas as formas que o contato fosse realizado. Fez uma viagem repentina ao Rio de Janeiro e ali desencarnou, como havia alertado o Espírito.
Em nossas especulações para identificar essas pessoas, consideramos que poderíamos explorar uma hipótese improvável e consequentemente cometer erros conclusivos, porém não resistimos fazer essas possíveis ligações entre fatos e pessoas:
- Alguém “de nome muito conhecido nas letras nacionais e que teve morte trágica”.
Quem poderia ser?
- Num trecho da crônica Armond enfatiza: “Conheço bem o assunto..., que teve, aliás, na época, profunda repercussão nacional”.
A que época e qual repercussão ele se refere?
- Em outro trecho Armond revela como se deu a morte do Espírito que se manifestou: "o homem que ele matara num duelo histórico propunha uma fraternização, leal e cristã, e avisava que se apressasse, porque pouco tempo lhe restava de vida, aqui”.
Que duelo foi esse? Que contexto histórico se relaciona ao fato?
Ao buscar na memória algumas possibilidades factuais, fomos também eliminando aquelas que não eram compatíveis com os dados informados pelo cronista. Restou apenas essa, que pode não ser a única, porém muito próxima dos acontecimentos: o duelo entre o escritor Euclides da Cunha (com 43 anos) e o jovem cadete Dilermando de Assis, na época com apenas 21 anos de idade. O fato ficou conhecido como Tragédia da Piedade, bairro da zona norte carioca onde morava Dilermando e o irmão mais velho. O motivo do confronto foi o profundo envolvimento sentimental de Dilermando com Ana Solon (de 38 anos), esposa de Euclides. Testemunha do confronto, o irmão de Dilermando, chamado Dinorah, também foi atingindo na nuca pelos tiros de Euclides, ficando invalído. Dinorah era atleta do Botafogo e cometeu suicídio em 1921 atirando-se nas águas do rio Guaíba, em Porto Alegre.
Em 1916 , numa repetição trágica, um dos filhos de Euclides e Ana tentara vingar a morte do pai e também foi morto por Dilermando, que era hábil atirador e campeão de tiro ao alvo. Dilermando foi absolvido pela justiça por legítima defesa nos dois episódios.
Na crônica o Espírito manifestante diz a Armond: “Preciso do teu auxílio e cometo-te a delicada incumbência de procurá-lo (pois é teu amigo) e dizer-lhe que em meu coração não remanesce ressentimento algum”.
Edgard Armond e Dilermando de Assis eram amigos? De onde se conheciam? Que afinidade tinham entre si?
Arrisquemos algumas semelhanças, pois as diferenças podem ser muitas.
Ambos eram militares e contemporâneos. Dilermando era apenas seis anos mais velho que Armond. Fizeram carreiras paralelas num período de 26 anos no qual participaram dos principais acontecimentos militares e políticos entre 1914 e 1940. Não seria coincidência nem difícil terem travado algum tipo de aproximação e amizade.
Dilermando viveu estigmatizado como o “assassino de Euclides da Cunha, o autor de Os Sertões”. Muitos militares humanistas lamentavam esse estigma e procuravam minimizar essa marca negativa realçando as qualidades do colega, que na época dos fatos era muito jovem e inexperiente.
Embora servindo em corporações diferentes (Armond era da Força Pública Paulista e Dilermando do Exército), os dois poderiam ter se conhecido em diversas oportunidades .
O primeiro casou com a filha de um marechal do Exército (Manoel Félix de Menezes) e o segundo casou-se com Ana Solon, filha do Major Frederico Solon, que teve atuação marcante na Proclamação da República.
Ambos eram maçons. Armond ingressou na ordem na cidade de Amparo, onde serviu na Força Pública, chegando ao grau de mestre. Dilermando era defensor da maçonaria tradicional e crítico da cisão ocorrida na orientação doutrinária das lojas no Brasil.
Quando desencarnou, em 1951, Dilermando já era general de exército e residia em São Paulo. Nessa época Edgard Armond já estava aposentado e exercia o cargo Secretário Geral da FEESP.
Se houve algum laço de amizade entre os dois, seria interessante saber em que circunstâncias isso ocorreu. Como relata Jacques Conchon (citado na biografia de Armond escrita por Edelso da Silva Júnior), certa vez o Comandante recebeu o telefonema de um coronel do Exército que queria conhecê-lo. Os dois haviam estado em lados opostos durante a Revolução de 32; a conduta e ação em combate do então capitão Armond o impressionou muito por este ter evitado umatragédia desnecessária entre os dois pelotões em confronto. Quem sabe se esse coronel não era Dilermando? Sim, certamente mais uma especulação.
Mesmo se tudo isso não passar de um grande equívoco da nossa parte, ainda restará uma dúvida: quem são esses dois espíritos inimigos famosos que Edgard Armond não conseguiu reconciliar numa sessão espírita?
Nenhum comentário:
Postar um comentário