terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Jesus, mito e verdade



Imagens mitológicas milenares da tradição do Cristo, algumas de origem mediúnica: Numú , o Divino Pastor (Lemúria); Juno, o Mago da Tormentas (Lemúria) ; Antúlio de Manha-Ethel (Atlântida); Abel, o Justo Amado de Deus; Khrisna ; Sidharta, o Budha; Zoroastro, o Profeta Dualista; Moisés (O Vidente do Sinai) e Jesus de Nazareth.


Recebemos do amigo Carlos, advogado em Santos, o seguinte questionamento sobre a historicidade e mitologia de Jesus:

“Recentemente, em um grupo de discussão da internet foram enviados alguns arquivos do YouTube que trata de um documentário sobre a mitificação de muito da história de Jesus, fazendo alusão de que Cristo teria sido criado através de várias outras mitologias pagãs. O texto e os vídeos vão além chegam até mesmo a questionar a existência histórica de Jesus. Comecei a me questionar e pensei: não é possível? Claro que devemos ter diversas indicações históricas da existência de Jesus? Ainda que, certamente, tenham sido deturpados pelas diversas traduções da Bíblia, devem haver diversas outras bases e provas históricas da existência de Jesus.

Quais as bases históricas da prova da existência de Jesus?

Fora a bíblia encontramos outras fontes históricas da existência de Jesus (documentos, registros etc)?

Você acredita que os primeiros cristãos inseriram em seus evangelhos mitologia pagã anterior?

Resposta

Sobre o assunto "Jesus" , devemos dizer que esses questionamentos e comparações não são novidades. Temos visto muitos documentários, comentados por "autoridades" de vários cantos do mundo enfatizando essa mitificação. Para termos uma idéia, no século XIX surgiu na Europa, sobretudo entre os alemães e franceses (Herbert Reimarus e Ernest Renan são bons exemplos), a chamada Alta Crítica da Bíblia, gente muito bem preparada e disposta a detonar o poder do clero, ou seja a "tradição" católico-cristã. Muita coisa foi por água abaixo, no terreno da fé, pois essa tradição era frágil e fácilmente contestável. Aliás, essa era a principal preocupação dos Espíritos e de Kardec. O massacre era previsível e inevitável, tal era a fragilidade dos religiosos dogmáticos. Se não tivesse ocorrido a "invasão organizada" dos Espíritos e a explosão dos fenômenos, o estrago teria sido muito maior ( releia Óbras Póstumas). Recomendamos que você leia também, modéstia à parte, os capítulos II e III ("Um Século Perigoso" e "A Razão e a Bíblia") do nosso livro Nova História do Espiritismo. Para encurtar o assunto, vamos ver se conseguimos responder suas perguntas:

1. Não existem bases históricas (documentais) ou provas materiais da existência de Jesus. O que existem são tradições orais que foram registradas pelos evangelistas. Nessa perspectiva, Sócrates também não existiu, senão na tradição construída por Platão. Como Jesus, Sócrates não escreveu nada, não deixando nenhuma prova material da sua passagem no planeta.

2. Os primeiros cristãos não eram pessoas cultas, com exceção de Paulo e Lucas, e logo que entraram em contato com o mundo greco-romano foram sendo dominados pela tradição sacerdotal dessas culturas. Suprimiram então a mediunidade, a idéia de reencarnação e tudo que poderia questionar o poder clerical. O recursos mais utilizados nessa supressão foram a adoção de dogmas e a mitificação dos temas considerados polêmicos.

3. É importante lembrar que o "mito" não significa necessariamente "mentira". Na mitologia é necessário diferenciar a tradição esotérica(iniciática e oculta) da tradição exotérica (externada), para as massas. Nas tradições orais, o mito é um recurso literário para registro e memória, construído através de ferramentas narrativas imagéticas como as metáforas, símbolos, mistérios e enigmas. Daí as semelhanças de elementos narrativos entre todos eles. As ideías de Jesus foram gravadas na memória dos discípulos e dos seus ouvintes através desses recursos, sobretudo as parábolas. Outro recurso foi a vivência ou exemplificação dos ensinamentos, fator de grande risco existencial, que resultou na morte dos mesmos, surgindo as figuras dos mártires, novos mitos ou exemplos vivos para o reforço da tradição. Chico Mendes, Ernesto "Chê" Guevara, Betinho, Lamarca e outros, hoje são mitos por causa das suas vivências ideológicas. Eurípedes Barsanulfo hoje é um mito do Espiritismo na região de Sacramento e Bezerra de Menezes não é muito diferente. Chico Xavier, antes de ser mito, produziu conhecimentos impressionantes sobre o cristianismo primitivo, coisas que nem mesmo os historiadores e os mais criativos ficcionistas poderiam imginar existir. Daqui há mil anos poucos documentos existirão sobre eles, mas a memória social terá de alguma forma preservado suas idéias e atos. Recomendamos também que você leia a introdução de O Redentor, de Edgard Armond, "A tradição messiânica", uma síntese curiosa sobre o mito Jesus.

4. Will Durant, o famoso historiador norte-americano, disse que seria impossível alguém ter inventado ou criado uma figura tão genial quanto Jesus, homem cujas idéias brilhantes e revolucionárias até hoje colidem com a moral primitiva e atrasada do ser humano. Mesmo os judeus, que são descrentes da figura mitológica de Jesus, reconhecem sua historicidade como expressão da tradicional da raça e inteligência judaicas, como foram Marx, Freud, Spinosa, Sabin, Einstein e muitos outros.

Enfim, o assunto continua apaixonante e polêmico. Vale lembrar que a "ciência" sempre esteve repleta de ideologia e que os paradigmas científicos sofrem também grande influência dos contextos históricos em que foram construídos. Não sabemos se fomos claros. Só sabemos que este é um assunto que não dá para dar por encerrado.

Na sequência, uma resenha esclarecedorora sobre o tema, escrita recentemente pelo nosso ex-professor Elias Thomé Saliba. E em seguida, dois curiosos textos sobre o mito “Sírius”, estrela ou sistema solar de onde teria originado, segundo antigos relatos esotéricos, a tradição cristã em nosso sistema planetário. O Espírito Áureo, pelo médium Hernani T. Santana, em “Universo e Vida”, publicado pela FEB, cita essa tradição de reencarnações provindas de Sirius e Capela, a mesma relatada por Emmanuel em “À Caminho da Luz”, da mesma editora.


Usos e abusos dos textos bíblicos

A Bíblia - Uma Biografia, de Karen Armstrong, revê a produção das centenas de narrativas escritas de 800 a.C. a 100 d.C.


Em 1813, Thomas Jefferson, utilizando-se de várias línguas, antigas e modernas, concluiu sua detalhada leitura da Bíblia. Valendo-se do método da "cola e tesoura", selecionou e anotou todos os aforismos morais e parábolas de Jesus, excluindo toda menção a inferno, condenação eterna, igreja institucionalizada e milagres - e concluiu: "O que resta é o mais sublime e benevolente código de ética já oferecido ao homem."

Esta famosa operação, conhecida como a "Bíblia de Jefferson", só foi possível no mundo moderno, que possibilitou, com o advento da palavra impressa, uma leitura pessoal e literal das escrituras e a criação de uma espécie de "cânone dentro do cânone" - um guia moral dentro do extenso labirinto da vida. Mas a Bíblia de Jefferson representou apenas um entre os muitos exemplos de ruptura com uma tradição milenar, pois a Escritura nunca foi realmente um texto, mas uma atividade, um ritual, um processo espiritual que introduzia milhares de pessoas à transcendência. Este é o principal argumento de Karen Armstrong, na difícil tarefa de contar não a história de um livro, mas desta autêntica e superlativa biblioteca que é a Bíblia.

Em capítulos detalhados e rigorosamente cronológicos, em A Bíblia - Uma Biografia, Karen Armstrong reconta toda a intrincada história da produção das centenas de narrativas escritas em aramaico, hebraico e grego, entre 800 a.C. e 100 d.C. Desde os tempos mais primitivos, a Bíblia esteve longe de possuir uma mensagem única. Vários editores fixaram os cânones dos testamentos, tanto judaicos quanto cristãos, incluíram visões concorrentes, aplainaram arestas e puseram-nas, lado a lado, sem nenhum comentário. Se alguém se dispusesse a fazer notas de rodapé, que rastreassem a origem primitiva das suas várias partes, as notas iriam fatalmente se sobrepor ao texto. Seria uma tarefa infinita, impossível para pobres mortais. Armstrong obviamente não chega a isto, mas constrói oito capítulos de tal forma minuciosos que exigem do leitor um conhecimento razoável dos próprios textos bíblicos.

A impressão da Bíblia de Gutenberg em 1455 não foi apenas uma revolução na história da cultura, mas uma mudança radical na história do livro mais lido no mundo. Ela marcou o início de incontáveis usos (e abusos) dos textos bíblicos, inaugurando o moderno e estéril hábito de arremessar textos para cá e para lá para comprovar argumentos, justificar ações ou subsidiar políticas. Das teimosias de Lutero aos arrebatamentos políticos dos fundamentalistas, Armstrong analisa vários episódios de chocantes distorções dos evangelhos. Parece que quanto mais as pessoas eram estimuladas a fazer da Bíblia o foco da sua espiritualidade, mais difícil se tornava encontrar uma mensagem essencial. Um único excerto poderia ser interpretado para servir a interesses diametralmente opostos. Ao mesmo tempo que afro-americanos recorriam à Bíblia para desenvolver sua teologia da libertação, a Ku Klux Klan a utilizava para justificar o linchamento dos negros. Inspirando-se em Santo Agostinho, Martin Buber e Franz Rosenzweig, Armstrong só vislumbra saídas numa exegese bíblica baseada na caridade e na benevolência: "Judeus, cristãos e muçulmanos - escreve - têm o dever de estabelecer uma contranarrativa que enfatize as características benignas de suas tradições culturais." Neste caso específico, qualquer interpretação da Bíblia que espalhasse ódio ou denegrisse outros sábios seria ilegítima. Ingenuidade? Talvez, mas, uma ingenuidade claramente fundamentada numa desapaixonada e cuidadosa leitura da história.

Armstrong adota uma abordagem francamente histórica, mais voltada para a difícil tarefa de reconstituir as formas de leitura e de recepção dos textos sagrados do que deslindá-los na sua extensa trajetória até o cânone. Escreve não propriamente a história de um livro, mas dos seus milhares de leitores e leituras possíveis. Abordagem feliz, já que todas as culturas antigas que produziram as Escrituras, do longo caminho que vai da Torá judaica à Vulgata de São Jerônimo, eram predominantemente orais - nas quais as pessoas se acostumaram a andar com as suas pequenas antologias de frases bíblicas na cabeça. Armstrong demonstra ainda como as escrituras judaicas e o Novo Testamento começaram ambos como proclamações orais - e mesmo depois que foram consolidados em escritos, restava muitas vezes uma forte tendência à palavra falada.

Armstrong nos dá também um fascinante capítulo sobre o Midrash - um conjunto de investigações eruditas sobre os possíveis significados dos textos sagrados. As centenas de "livros", produzidos em tradições orais díspares e desentranhados de uma miríade de seitas - não raro, muito distantes no tempo - só se tornaram "escrituras" quando lidos num contexto de rituais que os excluíam da vida cotidiana e dos modos seculares de pensamento. Noutros termos: todos os livros que compõem a Bíblia tornaram-se textos sagrados não a partir de quem os produziu, e sim, a partir das diversas formas nos quais foram lidos e recebidos. Num mundo como o nosso, da era digital, no qual nos acostumamos a encontrar a verdade ao clique de um mouse - ou a obter respostas imediatas, cheias de frases de efeito, para questões complexas - é quase impossível compreender a intensidade apaixonada com a qual a Bíblia era lida e replicar a experiência emocional da sua espiritualidade.

De qualquer forma, a noção de um texto duplo - alternando entre a palavra escrita e a glosa pessoal do leitor - fez da Bíblia talvez o melhor paradigma de uma daquelas definições de "clássicos" formuladas por Ítalo Calvino: "Um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer." Um livro que continha (e contém) uma multiplicidade de sentidos, exemplos tão heróicos quanto erráticos, narrativas belas e confusas - e centenas de mistérios irresolúveis cuja busca talvez fosse, para muitos autores, o objetivo de nossa viagem infinita e inacabada vida afora: "Lemos para fazer perguntas", escreveu Franz Kafka certa vez para um amigo. Já para aqueles inconformados com o insolúvel mistério do mundo - que só se sentem confortáveis porque ainda esperam encontrar aquele pote de ouro no fim do arco-íris -, o livro de Armstrong não basta. Neste caso, resta recorrer ao método da "cola e tesoura" e, à maneira de Jefferson, fazer a sua própria Bíblia particular.

Elias Thomé Saliba é historiador, professor de História das Idéias na USP e autor, entre outros, de As Utopias Românticas.


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